O exercício profissional do arquiteto, o que inclui aqueles que têm por atividade o ajuste de projetos à legislação arquitetônica e urbanística, exige não apenas o conhecimento dos conjuntos de normas, cravadas em instrumentos legais, mas também enormes doses de paciência e tolerância e algum conhecimento de psicologia e de fundamentos filosófico.
Ao contrário do que se poderia pensar, não se trata de tecedura de elogio. Os atributos necessários são apenas ferramentas de uso diário. Estão para o arquiteto como o martelo e o cinzel estão para o escultor, ou o pincel e a tinta para o pintor, ou a espada para o guerreiro.
Países europeus, não sei se todos ou alguns, abrem mão do ato oficial da aprovação de projeto arquitetônico. A conformidade com a legislação aplicável é verificada apenas no momento de atestar a conclusão da obra e considerá-la apta à ocupação.
Como seria para nós, atuantes no Distrito Federal, uma forma de condução como esta?
Para analisar convenientemente esta questão, é necessário, antes de mais nada, explicar o motivo das imprescindíveis doses de paciência e tolerância.
A paciência, também entendida como a capacidade de suportar, resignadamente, os infortúnios, advém do conhecimento do perfil comportamental de muitos (felizmente, não todos) daqueles que desejam aprovar um projeto arquitetônico. Diante do objeto do desejo contrariado, e conseqüentes interesses financeiros também, amigos se tornam inimigos, a estudada aparência do cordeiro se transmuta a olhos vistos, na rapidez de uma figura em modificação na tela de computador, revelando o lobo voraz.
O exercício da arte da paciência consiste em suportar, resignadamente, sem alterar o “anima”, as diferenças de coloração do momento, de sua tonalidade e ritmo, entendendo, pacificamente, a desarmonia de cada contexto.
A tolerância, compreendida como a faculdade de um indivíduo de desculpar arroubos advindos de interesses contrariados, implica no desenvolvimento da capacidade de ouvir diferentes opiniões, obviamente diversas da sua.
Em qualquer circunstância em que o debate de idéias representa atividade que objetiva iluminar o pólo da análise, supõe-se a inexistência de ímpetos resultantes da contrariedade. O nível é bem outro. Basta silenciar, ouvir e avaliar, atitude muito eficaz no processo de aprendizagem.
Princípios filosóficos não resultam de devaneios – foram e sempre serão fundamentados no modo de vida e no pensamento de cada momento da história. Nesta equação, as variáveis representam, entre outros, os avanços tecnológicos, a forma de agrupamento ou de desagregação social, a estrutura ou a desestrutura econômica de cada sociedade em determinado tempo e espaço. A despeito dessas alterações externas, as emoções humanas são imutáveis. Apesar de controláveis se trabalhadas convenientemente.
À atividade de aprovar projetos arquitetônicos é apenas mais uma circunstância que permite a análise de comportamentos diante de fatos específicos. Na dimensão do humano, não tem grande significado encerrado em si mesmo, como igualmente ocorre em infinitas outras situações que envolvem atividades humanas. Representa apenas um arcabouço, ou um enredo. Nada mais. O fundamental são os princípios do certo e do errado. Do positivo e do negativo, latente em cada circunstância.
Nesta nossa área de atuação profissional, o certo, ou o positivo, é o cumprimento das determinações legais. O errado, ou negativo, é o oposto disto.
Mas em que se esteiam os instrumentos normativos, urbanísticos e arquitetônicos? Obviamente, no precípuo atendimento ao bem-estar da coletividade, sem postergar os direitos individuais. Esta é a constante busca da legislação, que objetiva atingir o equilíbrio entre as duas partes deste todo, que se complementam e interagem continuamente, de modo variável no tempo e no espaço, de acordo com as transformações tecnológicas, culturais, sociais, históricas e econômicas de cada período e localidade.
Desde o ano de 1998, o Código de Edificações do DF, instrumento legal que regula as construções no interior de lotes, estabelece a possibilidade de ser emitido “visto” de projeto arquitetônico para residências unifamiliares e para edificações de uso misto, em que até 50% da referida edificação seja destinada a outro uso simultâneo além do residencial familiar.
O objetivo desta norma foi simplificar a análise das edificações de uso residencial unifamiliar. Deste modo, para fins de visto, não são verificados parâmetros relacionados à área e dimensão mínima de compartimentos, índices mínimos de iluminação e ventilação e pé-direito, e outros relativos à área interna da edificação. Mas são analisados os parâmetros urbanísticos e os afastamentos de aberturas em relação aos limites do lote, quando compartilhados com lotes vizinhos.
Contudo, exige-se a assinatura de declaração conjunta proprietário/autor do projeto arquitetônico em que afirmam estar cumprindo a legislação aplicável – aquela não analisada pelo GDF.
Mas o que acontece efetivamente é desastroso. A despeito das assinaturas da declaração, muitos projetos não atendem às condições mínimas exigidas. E quem assina sequer titubeia diante da possibilidade de ser, futuramente, arrolado em processo por falsa declaração. Acrescente-se a isto as tentativas de burla quanto aos afastamentos mínimos exigidos e, pior ainda, em relação ao verdadeiro uso pretendido para a edificação – o habitacional coletivo – ocultado por múltiplas denominações inseridas no projeto. Mas o partido arquitetônico denuncia o abuso.
Estes fatos foram tomados como exemplo por serem os mais comuns, considerando-se que o projeto de habitação unifamiliar é o de maior freqüência.
Neste momento podemos retornar à pergunta inicial: Como seria, especificamente no Distrito Federal, se a aprovação de projetos fosse dispensada enquanto ato técnico/administrativo, e só posteriormente a obra pronta fosse vistoriada para a emissão de Carta de Habite-se? O contexto urbano estaria, com certeza, em situação lastimável. Não seriam respeitados o uso nem as atividades permitidas para os lotes, proliferariam as quitinetes, evidentemente já comercializadas e ocupadas, sobretudo nos locais mais restritivos; os coeficientes de aproveitamento estariam mais que excedidos, pela ganância em obter lucros crescentes; as vias de acesso de veículos estariam tomadas por vagas de estacionamento, por não serem reservados locais para este fim no interior dos lotes; bares barulhentos seriam instalados no interior de áreas eminentemente residenciais; os passeios estariam suprimidos pelos avanços sobre área pública; inúmeras construções seriam erguidas em passagens de pedestres; enfim, o caos estaria instalado.
Mas o que estaria subjacente a esta tendência em romper as barreiras da legislação? A resposta é simples – a ausência da compreensão sobre os limites dos direitos coletivos e individuais. A valorizada teoria da esperteza, do “vou me dar bem de qualquer jeito”, do “eu que não vou ficar no prejuízo”, do “os outros que se virem, to resolvendo o meu lado” e, ainda, do “se o meu vizinho fez eu também posso, não tem fiscalização, não?”.
Como afirmamos inicialmente, a paciência e a tolerância são as armas que o guerreiro não pode prescindir. Lamentavelmente. E como gostaríamos de depô-las. Como é extenuante, física e espiritualmente, buscar, em caráter permanente, educar positivamente, de maneira silenciosa e sem poder abordar de forma direta o seu objeto de ensino! Não é possível dizer diretamente a alguém o objetivo que se deseja alcançar. Estaria totalmente ausente das atribuições profissionais e funcionais.
Contudo, muitos entendem e após algum tempo abordam diretamente o assunto. Este é um momento estimulante. O sentimento de ter valido o esforço redobra o ânimo de continuar o caminho.
A partir desta constante procura, melhorei a minha compreensão do significado e a profundidade da oração da serenidade, obra prima sobre os pilares da paciência e da tolerância:
“Deus, dai-me serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar, coragem para mudar as coisas que eu possa mudar e sabedoria para que eu saiba a diferença”.