Em 1979, foi publicada a Lei Federal nº 6766, que trata do Parcelamento Urbano e dos condicionantes técnicos intrínsecos a esta intervenção.
O Art. 4º desta lei determina a obrigatoriedade de serem implantados, em qualquer loteamento não industrial, equipamentos urbanos e comunitários e espaços livres de uso público. A proporção exigida depende da densidade de ocupação prevista para a gleba, desde que não seja inferior a 35% de sua área.
Considerada esta determinação, as áreas públicas do loteamento, onde se incluem as vias de circulação de veículos e pedestres, as áreas verdes, os equipamentos comunitários de educação, saúde, segurança, lazer, estacionamentos públicos e similares e os equipamentos públicos urbanos devem ser calculados de acordo com a densidade demográfica prevista para a gleba loteada, com no mínimo 35% de sua área.
No caso específico do Distrito Federal, apesar do atendimento a esta determinação urbanística, muitas Leis de Uso e Ocupação do Solo foram implantadas sem que uma projeção dos futuros complicadores ou incômodos urbanos fosse vislumbrada, como e o caso da crescente concentração de veículos, demandando incessantes acréscimos de sistemas viários e de oferta de estacionamentos públicos.
Habitações Coletivas no Plano Piloto de Brasília:
As Habitações Coletivas do Plano Piloto, precursoras desta forma de ocupação no Distrito Federal, foram criadas com a intenção prescípua de implantar na nova Capital do Brasil os princípios defendidos por Le Corbusier, onde a modernidade se traduzia em forma (prismática), acessada através do pilotis livre. A circulação pretendida centrava-se no deslocamento de pedestres, sem barreiras arquitetônicas que interceptassem o caminhar e a visualização.
A concepção urbanística, alavancadora do tombamento do Plano Piloto como Patrimônio Cultural da Humanidade confronta-se, hoje, com a realidade de sua própria repetição em módulos, as superquadras, que inevitavelmente levaram à Setorização, a ao conseqüente acesso entre os usos, só possível através da utilização de veículos, sejam individuais ou coletivos.
Curiosamente, a despeito da intenção inicial de possibilitar um modo socialista de vida através da convivência entre diferentes camadas sociais em mesmo espaço urbano, questões dialéticas foram paradoxalmente interpostas na própria distribuição das moradias: As superquadras 300, 100 e 200 foram dotadas de subsolos destinados a garagens (algumas, na faixa das 100, têm garagem no térreo, vinculada à edificação), enquanto a faixa das 400 não só foi considerada como “econômica”, mas também não contou com garagens em subsolo, como se o caráter “econômico” da moradia implicasse diretamente em abrigar usuários cuja condição financeira impedisse a aquisição de veículo, além do encarecimento da obra pela construção de subsolo.
Considerando que a dimensão média de um bloco residencial nas superquadras 300, 100 e 200 é de 12,5m X 85m = 1.062,50m², concluímos pela possibilidade, de cada bloco, dispor de mais de 100 apartamentos e cerca de 54 vagas para veículos.
A conseqüência óbvia deste desajuste, em que o número de vagas não atende minimamente ao número de apartamentos, foi a publicação da legislação sobre avanço com garagem em área pública, no nível do subsolo, que permite o avanço máximo de 155% em relação à área do lote. Conseqüentemente, o avanço de subsolo no entorno imediato de cada projeção alcança o limite de 1.646,87m², gerando a impermeabilização do solo em proporções preocupantes.
Se um bloco ocupa 1.062,50m² (12,5m x 85m) os 11 blocos das superquadras 100, 200 e 300 (superquadras que possuem subsolo destinado a garagem), então só os blocos ocupam e impermeabilizam 11.687,50M².
Considerando que cada bloco pode ter mais 155% de avanço de subsolo, em área pública, então cada bloco possui um acréscimo de impermeabilização de 1.646,87m², que somado à área de subsolo em cada projeção, alcança 2.709,37m², totalizando, em cada superquadra, 29.803,07m² de área impermeabilizada.
O número de superquadras em apenas uma asa é de 16 x (Quadras 100, 200 e 300), logo, são 48 superquadras. Portanto, a área total impermeabilizada por construções em subsolo, em uma asa, é de 1.430.547,36m². Poderíamos supor que apenas 47,68% da superquadra seria área permeável. Mas não o é, em função dos equipamentos comunitários e públicos existentes no interior de cada superquadra (Escolas, Igrejas, Pontos de Taxi, Bancas de Jornal, calçadas, vias de acesso de veículos, etc.) que certamente impermeabilizam, no mínimo, mais 25% da área total de cada superquadra, resultando em área total impermeável de cerca de 72,68%. Logo, a área permeável de uma superquadra não é superior a 27,32%.
As Superquadras 400 não possuem subsolo fora dos limites do lote, logo, a área permeável é bem maior.
Estas superquadras possuem vinte blocos cada uma, com projeções de dimensões inferiores às das demais superquadras, aproximadamente 10 X 80m = 800m². Considerada a área impermeabilizada de 20 blocos, 16.000m², acrescida de 25% de equipamentos públicos e comunitários, o percentual de impermeabilidade atinge cerca de 20.000,00m², ou 32%.
Acrescente-se a estes dados a faixa de ocupação das Quadras 600, com lotes na maioria impermeabilizados, e tem-se a razão lógica da invasão de águas no Instituto Central de Ciências da UnB, localizada no ponto mais baixo do desnível do solo.
Dois fortes entraves na manutenção de áreas permeáveis no Distrito Federal dificultam o gerenciamento urbanístico. Fica-se no ponto intermediário entre o como solucionar a questão da circulação e guarda de veículos no valorizadíssimo solo do DF, atraindo a atenção empresarial e o que deve realmente ser feito.
Habitações Coletivas no Guará:
O Guará I e o Guará II, núcleos urbanos criados para solucionar os problemas de moradia dos servidores públicos, foram implantados segundo uma linguagem urbana muito próxima da adotada no Plano Piloto sob o aspecto da setorização. Neste contexto, quatro tipologias foram criadas – a residencial unifamiliar, a residencial coletiva, a comercial local e a institucional.
No Guará I, dezessete módulos se repetiram de modo idêntico, de forma justaposta, compondo as Quadras Internas (QIs), de números 1 a 12 e 14, 16, 18, 20 e 22. No interior de cada um destes módulos foram projetados quinze conjuntos habitacionais unifamiliares, sete lotes destinados a Habitação Coletiva, dois blocos para Comércio Local e dois lotes destinados ao Uso Institucional (Jardim de Infância e Playground).
À despeito da considerável densidade populacional, não houve o cuidado em inserir na legislação urbanística a obrigatoriedade de construção de subsolo, destinado a garagem, para atendimentos às 07 Habitações Coletivas.
Como resultado, estas unidades, igualmente consideradas, à época, como “econômicas”, hoje são cercadas por abusivas grades sobre a área pública que, esperava-se, fosse área livre de circulação de pedestres.
As Quadras Econômicas Lúcio Costa foram propostas, igualmente, para abrigar a população de baixa renda. À semelhança das Quadras 400 do Plano Piloto e das Habitações Coletivas do Guará I, não foram propostos estacionamentos ou garagens para atendimento à população, constando da legislação urbanística que “os passeios devem ficar do lado da projeção mais afastado da rua para permitir o estacionamento de veículos nos Pilotis”.
No Guará II, diferentemente do Guará I, as Habitações Coletivas foram implantadas ao longo de sua Via Central. Por legislação urbanística, desde o início, tornou-se obrigatória a previsão de estacionamento ou garagem dentro dos limites do lote (proporção de apenas uma vaga por apartamento).
Nas demais localidades da Região Administrativa do Guará, não se deu a devida atenção à necessidade de prever vagas para veículos internamente aos lotes. Mesmo nos locais considerados como pólos geradores de tráfego, caso específico de lotes de grandes dimensões, denominados Áreas Especiais, as referências à previsão de vagas são de importância secundária. No caso das Áreas Especiais do Guará I, a legislação aplicável sequer fazia referência a esta função, apesar da destinação permitida ser Institucional – Hospital, Escola e outras atividades semelhantes – gerando intensa atração de veículos.
O mesmo, certamente, ocorreu com todas as cidades do Distrito Federal. Não por omissão, mas por impossibilidade de prever a influência de futuros fatores econômicos, sociais e ambientais sobre os aspectos urbanísticos.
O Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília, os Avanços de Subsolo e as Densidades de Ocupação do PDOT:
Atualmente, a ordenação urbanística do Plano Piloto está em discussão, objetivando a elaboração do Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília, conforme previsto pelo PDOT (Lei Complementar nº 803/2009, Art. 153) correspondente, simultaneamente, à legislação de Uso e Ocupação do Solo e do Plano de Desenvolvimento Local da Unidade de Planejamento Territorial Central, baseadas nos “princípios e objetivos do PDOT, da legislação específica relacionada à Proteção de Bens do Patrimônio Cultural, Histórico e Paisagístico” (PDOT, Art. 154).
A despeito destas discussões e seus objetivos, dificilmente será abordada a questão dos avanços do subsolo em área pública, aplicável ao Plano Piloto desde a década de 80, autorizada por legislação específica, sob o comando das Normas de Edificação, Uso e Gabarito (NGB), legislação urbanística adotada para a área.
Os avanços de subsolo são, hoje, as soluções encontradas para a guarda de veículos não apenas no perímetro de tombamento, mas também nas demais cidades do DF.
Como uma espécie de “varrer a sujeira para debaixo do tapete”, assim foram ocultados os veículos que, de outra forma, tornariam os estacionamentos públicos das superquadras um mar de capotas e rodas a gritar por mais e mais áreas que lhes coubessem, igualmente exterminando as áreas verdes. Na verdade, o resultado final seria a mesma calamidade que incapacita não apenas a infiltração de águas pluviais do perímetro tombado, mas também de todas as cidades do DF.
Soluções? Certamente existem. Passam por análises mais aprofundadas e muito menos obvias que os simples “esticamentos” dos subsolos, facilitando sobremaneira os afazeres dos empresários construtores das edificações, mantendo o descaso do Poder Público com o transporte coletivo que deveria ser eficiente e democrático (no sentido de oferecer condições adequadas de utilização a todas as classes sociais), estimulando os ganhos da indústria automobilística que a cada dia se esmera mais em ofertas para abarrotar vias, estacionamentos e garagens com quantidade crescente de veículos.
Os erros estão apenas no presente? Obviamente não. Escorrem de sua origem, o planejamento urbano do Plano Piloto e das demais cidades.
As superquadras da área tombada foram projetadas para número fixo de apartamentos em cada projeção. As de números 300, 100 e 200, com área de 1.062,50m² cada, permitia que cada uma das projeções tivesse, em média, quatro acessos verticais, com dois apartamentos em cada pavimento servidos pelo mesmo elevador. Considerados os seis pavimentos existentes, o resultado eram apenas 08 apartamentos vazados (abertos para as fachadas frontal e posterior) em cada nível, totalizando 48 apartamentos na projeção.
De acordo com o já mencionado cálculo do número de vagas, as 54 possíveis seriam suficientes para o atendimento aos moradores da projeção.
Contudo, a legislação urbanística foi gradativamente modificada. Inicialmente, já não havia mais a obrigatoriedade dos apartamentos serem vazados. Depois passou a ser possível construir quatro apartamentos por pavimento, em cada prumada, considerada a redução da área mínima de cada unidade habitacional. Resultado: o número de apartamentos em cada projeção passou dos iniciais 48 para 96. Logo, dobrou em relação à quantidade inicial. Nestas novas condições o número de vagas em subsolo (54) já não atendia a relação de uma para cada unidade imobiliária. Havia uma carência de 42 vagas.
Neste momento surgiu a primeira legislação de avanço de subsolo, como forma de abrigar o excedente, porém muito restrita em sua amplitude.
Mas logo em seguida a área útil mínima dos apartamentos foi novamente reduzida.
De alteração em alteração, já inexistia edificação especificamente econômica. Apartamentos com estas características passaram a ser introduzidos em quaisquer projeções. Considerando que as áreas mínimas de compartimentos dos apartamentos econômicos podem ser reduzidas, então é possível construir uma unidade habitacional com área total de 68,00m². Acrescente-se a isto que habitações coletivas econômicas em projeção e sobre pilotis podem ter um único elevador atendendo até 12 apartamentos por pavimento.
Nestes termos, a projeção de 1.062,50m² inchou em número de apartamentos, sendo possível introduzir 12 apartamentos por andar, ou mais de 100 apartamentos em cada edificação.
Como conseqüência, “esticou-se” mais ainda o subsolo, chegando-se à atual situação absurda de impermeabilização do solo e seus resultados dramáticos – o prejuízo a terceiros, como o triste caso da UnB.
Retornando à aplicação da Lei Federal 6.766/79, modificada pela Lei nº 9.785/99, verifica-se que o Art. 3º, Parágrafo 5º, inclui como infra-estrutura básica do parcelamento os equipamentos urbanos de escoamento de águas pluviais. O Art. 4º, Inciso I, estabelece que a implantação de equipamento urbano deve ser proporcional à densidade de ocupação prevista pelo Plano Diretor.
Por densidade de ocupação podemos entender a densidade demográfica de determinada área, conceito intrinsecamente relacionado ao Coeficiente de Aproveitamento de cada unidade imobiliária, fator de adensamento construtivo de todo um núcleo urbano.
Para o conjunto urbano tombado, o PDOT (Anexo II – Mapa 5), determinou a obrigatoriedade de ser garantida uma densidade demográfica baixa (superior a 15 até 50 habitantes por hectare). Considerada apenas uma superquadra do Plano Piloto, com área total de 62.500m², ou 6,25ha, seriam admitidos até 312,5 habitantes, em cada superquadra. Entretanto, consideradas as 11 projeções existentes, com cerca de 100 apartamentos em cada uma, o resultado seria um total de 4.400 habitantes por superquadra. Obviamente, número muito maior que o previsto pelo PDOT, correspondente a 704 habitantes por hectare, superando a densidade alta definida pelo PDOT, com valores superiores a 150 habitantes por hectare (PDOT, Art. 39).
Conclusão
Considerando que o PDOT prevê a inclusão de novas ocupações em vazios urbanos, objetivo corroborado pelos PDLs, se na área tombada já não se justifica a relação densidade demográfica/Coeficiente de Aproveitamento/ocupação efetiva/ equipamentos urbanos e escoamento pluvial, como conciliar ocorrências tão díspares, verificadas no conjunto do DF, com a Lei Federal nº 6.766/79 e o crescente e perigoso desafio imposto pelo constante acréscimo de veículos?