Afirmar que toda cidade sofre contínua pressão por crescimento territorial e urbano não é ato inovador.
As cidades, sabemos, são adensadas demograficamente por fatores relacionados ao acréscimo natural de habitantes e por migrações de outras áreas. Quanto mais intenso for o desenvolvimento territorial e urbano, com maiores ofertas de serviços, produtos e postos de trabalho, maior a possibilidade de fixação de habitantes originados do crescimento natural e mais intensa a polaridade atrativa de migrações. Ou seja, a procura pelo bem-estar social é inerente ao ser humano.
Parte desta constante busca pela melhoria da qualidade de vida é instintiva, na medida em que, como qualquer outro ser da natureza, necessitamos de alimento, água, abrigo e meio ambiente favorável, como garantias mínimas de sobrevivência. Mas a outra parte desta busca se relaciona com fatores bem mais complexos, associados com nossa capacidade racional e emocional de avaliar em que condições estamos vivendo, após garantida a sobrevivência básica. Neste momento, interveêm as condições de saúde, de ensino, de trabalho, de segurança, de deslocamento e mobilidade urbana, de poder de compra, de opções de compra, de proximidade e qualidade dos equipamentos públicos, de atendimento satisfatório dos serviços urbanos – redes de abastecimento de água, de captação de esgoto e águas pluviais, de fornecimento de energia elétrica, de coleta, transporte e tratamento de lixo, entre outros.
Nossa crescente complexidade atingiu níveis evolutivos que nos permitiram entender, finalmente, o fenômeno da “cobra que morde o rabo”. Não é possível aceitar que comportamentos predatórios, movidos pela ambição desenfreada, modifiquem negativamente as condições mais elementares de sobrevivência, agredindo e pondo em risco os condicionantes do meio ambiente natural em nome da necessidade de crescimento urbano.
A evidência da necessidade de prover o meio urbano de novos sistemas de atendimento e ampliar os existentes não pode perder de vista o contínuo aprimoramento da qualidade de vida dos seus habitantes. As alterações normativas, antes de mais nada, devem ser precedidas de estudos para elaboração do diagnóstico da área urbana quanto à sua dinâmica, sob os aspectos positivos e negativos presentes na situação já estabelecida e, só então, definir que condições devem ser alteradas e, sobretudo, como alterá-las, mantendo-se o foco nas garantias do bem-estar da população.
Neste contexto, cabe ao órgão de urbanismo governamental monitorar, continuamente, a dinâmica urbana e as novas necessidades da população e, ao mesmo tempo, identificar as estruturas obsoletas diante deste contínuo processo de mudança. Enfim, torna-se imprescindível conhecer as transformações sociais que, inevitavelmente, são vetores de novas necessidades e aspirações.
Só a partir deste conjunto de ações é possível definir o que representa o verdadeiro interesse público, assim qualificado pelas reais necessidades da população. Com base nestes estudos, vislumbram-se cenários futuros, dentro de determinado período temporal.
A seriedade do levantamento de dados, da análise, da formulação de hipóteses e da comprovação de tese não pode admitir interferência externa de qualquer natureza, estranha ao contesto da pesquisa e suas conclusões. Não pode atender a interesses especulativos de quem se aproveita da possibilidade de mudança para obter ganhos crescentes, circunstância absolutamente alheia ao princípio do bem-estar social e, portanto, ao exercício do urbanismo.
Não se trata, também, de assumir uma posição contrária à produção da arquitetura e do desenvolvimento do urbanismo sem a sustentação promovida pelo aspecto econômico. Seria insano desconhecer a importância deste fator na promoção do bem-estar social. O que realmente importa é garantir que as condicionantes urbanísticas respondam satisfatoriamente aos anseios da população envolvida, observado o princípio de coletividade e seus direitos, garantindo ainda os direitos individuais dentro do respeito ao contexto coletivo.
Concluímos, portanto, que a presença de todos os requisitos – econômico, social, cultural, ambiental, psicológico e sociológico, entre outros – torna-se imprescindível à proposição das mudanças urbanísticas, desde que de forma equilibrada. Só então podemos afirmar que determinada alteração se deu por interesse público.
O que aconteceu com o Plano Diretor do Guará, na mais benevolente das avaliações, foi uma desequilibrada ingerência dos fatores econômicos sobre todos os demais. Houve interesse em satisfazer, em profusão, o mercado da construção civil, transformando a destinação de áreas, antes reconhecidamente obsoletas quanto aos usos previstos, em “filet mignon” imobiliário, sob o pretexto falsamente social de estar provendo a população de novas ofertas de unidades habitacionais. Convenhamos, os preços praticados para a aquisição destes produtos encontra-se muitíssimo além do que podem pagar os inquilinos do Guará e de outras áreas. E a exploração se perpetua.
Por outro lado, a ODIR, a ONALT e o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), este último elaborado a expensas dos proprietários, correspondem às outorgas pela valorização do lote a partir do acréscimo do potencial construtivo (ODIR) e a partir da valorização pela mudança de uso (OANLT). O EIV representa diagnóstico e prognóstico das ocorrências resultantes do adensamento populacional, impacto sobre o entorno e sobre o meio ambiente, entre outros fatores analisados, e conclusão sobre as ações necessárias à minimização dos efeitos negativos.
Neste processo, ganha o proprietário do lote, que vê a sua unidade imobiliária intensamente valorizada em pouquíssimo intervalo de tempo, além das sucessivas propostas formuladas por empresários interessados em adquirir aqueles imóveis.
Ganha o Poder Público, através da cobrança da ODIR e da ONALT, incidentes no momento em que as empresas solicitam o Alvará de Construção, e nas obras públicas decorrentes do EIV, a serem realizadas a expensas dos empresários.
Mas o que ganha à coletividade? Certamente os valores pagos ao Poder Público como ODIR e ONALT são gastos repassados, pelas empresas, aos adquirentes dos apartamentos, como em qualquer operação comercial.
Além do preço do metro quadrado decorrente da própria localização do imóvel e outros fatores, acrescente-se a mais valia do lote, produzida pela cobrança da ODIR, ONALT e as obras públicas resultantes do EIV.
A suposta execução de obras públicas que amenizem o incômodo causado pelas novas ocupações são meio invisíveis – enxerguei poucas – no meio urbano.
Afirmar que tudo fica como antes seria, no mínimo, uma grande leviandade. Os ônus a serem arcados pela população são imensos, quando em troca recebem, apenas, maiores dificuldades de transporte, de circulação no meio urbano, de fornecimento deficiente de água e energia, de riscos crescentes na travessia de ruas, de acréscimo na demanda por equipamentos públicos, de atração intensa de bandidagem, de insegurança, enfim, perda de qualidade de vida sob todos os aspectos. Afinal, prover as populações urbanas de condições satisfatórias de vida sempre foi um enorme entrave para qualquer administração pública. Pensar nesta histórica dificuldade somada à crescente tendência de adensamento das áreas urbanas produz um inevitável calafrio.
O conceito “interesse público”, do ponto de vista urbanístico, envolve ações a serem adotadas pelo Poder Público no sentido de prover a população de qualquer núcleo urbano de condições cada vez mais satisfatórias relacionadas à sua qualidade de vida.
A qualidade esperada representa a produção de novos postos de trabalho, novas ofertas habitacionais, atendimento á demanda por hospitais, escolas, entre outros equipamentos, além do atendimento às necessidades de segurança pública.
Mas uma outra face é igualmente fundamental. Também há que se atender as aspirações pela manutenção do horizonte, pelas áreas verdes, pelas áreas livres, enfim, pelos elementos a que cada população, de acordo com cada localidade, tem se habituado no decorrer do tempo, enquanto elementos integrantes e indissociáveis dos perfis cultural e psicológico que definem o sentimento de “estar em casa”, de reconhecer diariamente o seu próprio espaço, livre dos sobressaltos que sucedem as aventuras.