terça-feira, 9 de abril de 2013

Habitação Coletiva – A História, os Princípios e os Desvios Através do Tempo.




 

Nenhuma criação arquitetônica demonstrou-se tão eficaz na solução dos problemas de moradias urbanas quanto a invenção das habitações coletivas.

Derivada do antigo modelo de residência individual com dois pavimentos, a habitação coletiva apresentou-se como resposta à urgente necessidade de abrigar as populações desprovidas de moradias após a segunda guerra mundial.

De solução para necessidades imediatas, o princípio tornou-se, ao longo dos anos, eficiente instrumento para atender ao contínuo aumento de densidade populacional e a imprescindível criação de ofertas de residências urbanas.

No Brasil, a implantação de edificações destinadas a este uso sofreu consideráveis alterações relativamente aos princípios originais.

Na cidade do Rio de Janeiro, as concentrações deste tipo de edificação sempre foram significativas, curiosamente, nas áreas mais valorizadas, especificamente na zona sul daquele núcleo urbano, nas proximidades imediatas da orla marítima, enquanto as áreas mais afastadas são eminentemente ocupadas por habitações individuais.

Desta observação é forçoso concluir que a implantação das habitações coletivas naquela cidade não decorreu da necessidade de prover as carências da população, mas, na contramão do princípio, objetivou o aproveitamento máximo das áreas economicamente mais valorizadas, com o intuito de extrair lucros do mecanismo do solo criado.

Em São Paulo, cidade de extrema densidade populacional, a concentração de habitações coletivas é muito presente em seu centro-sul. Por razões semelhantes às do Rio de Janeiro, aquela região mais valorizada tem a expressiva preferência dos investidores. Não raro, propagandas sobre os benefícios de morar naquela localidade são expostas nos meios de comunicação de Brasília que, por sua vez, atrai número considerável de compradores paulistas para as novas edificações de mesma natureza, construídas sob as benesses dos Planos Diretores Locais (PDLs), em especial o do Guará.

O caso específico de Brasília é muito significativo sob o ponto de vista da mudança de curso da habitação coletiva.

Criada na década de 1950, Brasília, mais exatamente o Plano Piloto, foi ocupada por projeções – lotes isolados, com quatro fachadas absolutamente livres – distribuídas por superquadras que compõe o tecido urbano, estendendo-se a norte e a sul da cidade.

Considerada a forte influência do arquiteto francês Le Corbusier, Lúcio Costa, o mentor do plano urbanístico de Brasília, introduziu o conceito de habitação coletiva com o objetivo de garantir condições esteticamente produzidas e funcionalmente bem solucionadas, como forma de atender plenamente as necessidades da população.

Na concepção original, estas edificações deveriam corresponder à coexistência de diferentes classes sociais e econômicas, em mesmo bloco residencial. Em cumprimento a este objetivo, os apartamentos não podiam ser vendidos. As moradias eram entregues a cada servidor público, civil ou militar, que pagava ao governo federal uma quantia designada por “taxa de ocupação”.

Em termos de princípio ideológico, a ideia parecia perfeita. Mas em pouco tempo começaram a surgir conflitos entre vizinhos imediatos, consideradas as diferentes formas de vida e de apreensão do espaço.

Simultaneamente, os ocupantes dos imóveis, habituados de longa data aos mecanismos do mercado, sentiram-se instáveis por morar em algo que não lhes pertencia. Ainda no final da década de 1960, poucos anos após a inauguração de Brasília, o governo federal iniciou o procedimento de venda dos imóveis a seus ocupantes.

A ideia inicial que definia o objetivo das habitações coletivas foi definitivamente abandonada. A partir desse momento, o sistema habitacional coletivo de Brasília ocupou o espaço comum próprio de qualquer outra cidade.

Na década de 1980, o Tombamento do Perímetro Urbano de Brasília, por suas excepcionais características e importância histórica, artística e cultural – fundamental iniciativa que manteve o organismo da cidade livre de alterações físicas – resultou em imensa valorização do solo urbano não apenas na área tombada, mas em todo o Distrito Federal.

O raciocínio adotado para o mercado de imóveis é muito simples: Quanto mais próximo o apartamento estiver do centro urbano, localizado na confluência dos Eixos Rodoviário e Monumental, mais caros serão. Quanto mais próximo do Eixo Rodoviário, também maior será a valorização.

Outros fatores interferem na definição de preços, como a área de cada imóvel (os mais antigos são maiores e vazados), a presença ou não de elevadores, garagem subterrânea e a idade da construção.

Mas o número fixo de projeções no Plano Piloto foi quase totalmente esgotado, reduzindo ao mínimo as possibilidades de construções. A partir deste momento, surgiram os Planos Diretores Locais, abusivos quanto à criação e mudança de destinação de áreas no entorno do Plano Piloto, sobretudo em cidades localizadas em suas imediações. Obviamente, quanto mais próximos do Plano Piloto, mais elevados são os valores dos imóveis.

O abuso dos PDLs se revelou no desvio da função atribuída à habitação coletiva. De solução inteligente para atendimento à crescente demanda por imóveis, pela população, em qualquer núcleo urbano, passaram a instrumentos com restrição de acesso, vinculada, apenas, ao nível de renda do comprador.

Mas ocorreram experiências no sentido de prover a população de baixa renda de moradias em habitações coletivas.

O exemplo mais clássico, no Distrito Federal, são as Quadras Econômicas Lúcio Costa (QELCs), localizadas na Região Administrativa do Guará, às margens da Estrada Parque Taguatinga (EPTG), criadas na década de 1980.

A despeito de carregarem o nome do criador do projeto urbanístico de Brasília, o planejamento destas quadras, consideradas de objetivo econômico pecou, sobretudo, pela falta de previsão de vagas para veículos e de tratamento das áreas intersticiais localizadas ao redor das projeções e dos lotes destinados aos usos institucionais e comerciais.

Um dos resultados desta desatenção é a imensa fila de carros ao longo das estreitas vias de acesso. Incrivelmente, do Memorial Descritivo (MDE) que compõe o projeto urbanístico consta a informação de que assim deveria acontecer.

O outro resultado de profunda negatividade, também relacionado à ausência de estacionamentos ou garagens, foi a iniciativa dos moradores das projeções que, por alegadas razões de segurança, criaram por conta própria e sem qualquer ação governamental contrária, cercados imensos sobre as áreas intersticiais sem função definida, vizinhas às projeções, com a finalidade de estacionamento para veículos.

Em muitas circunstâncias, estes cercados pertencentes a projeções vizinhas se encontram ou deixam uma faixa de, no máximo, 1m de largura, para passagem de pedestres.

Estas edificações coletivas, originalmente limitadas a 3 pavimentos sobre pilotis, tiveram a permissão do malfadado PDL do Guará para número maior de pavimentos, o que acarretaria aumento da densidade populacional e acréscimo considerável no número de veículos. Felizmente, a futura Lei de Uso e ocupação do Solo, se permanecer conforme proposta, impedirá o desvio do gabarito original, desfazendo o desatino.

Na história da habitação coletiva está implícita a contraposição entre os princípios ideológicos de esquerda e de direita. Contudo, longe se vai o princípio socialista da igualdade na distribuição de renda e, portanto, do acesso igualitário à moradia, já que não encontrou a forma, ou a fórmula, de garantir a produção de bens sem a participação de empreendedores privados. Da mesma forma, longe se vai o princípio capitalista da produção para enriquecimento ou acesso de poucos e empobrecimento da massa populacional, que incapacitada para o consumo de bens, não realimenta o sistema.

Neste sentido, ingênuas se demonstraram as experiências de construções destas edificações em países onde grandes massas humanas se aglomeram em espaços minúsculos, em situação lastimável.

Igualmente ingênua foi a criação das Quadras Econômicas Lúcio Costa, onde está exposto o princípio de que a população de baixa renda não tem acesso a carro. Além da falta de previsão quanto à valorização daqueles imóveis, considerada a estreita proximidade com o Plano Piloto de Brasília.

Por outro lado, humilhante é a condição de grande parte dos habitantes do Distrito Federal, submetidos aos escorchantes preços cobrados pelos apartamentos, lhes impedindo o acesso moradias melhores. Conforme já sabemos, o resultado é a invasão de terras públicas, acessíveis a diversas faixas de renda e objetos de enriquecimento de espertos.

Soluções existem. É óbvio. Se o problema foi constituído, a resposta é vinculada. Basta que a procuremos com o pensamento voltado para a história presente e para as perspectivas futuras, livres de rígidos princípios ideológicos contidos em cartilhas antigas que impuseram modos de agir. Devemos conhecer as diferenças entre o que de fato funcionou, mas não tem lugar na realidade presente e sua dinâmica própria e o que funcionou e pode ainda funcionar. Livres dos preconceitos que emergem de ideias pré-fabricadas. Vamos despertar. Os sonhos se foram. Mas os velhos. Os novos esperam a sua vez.