Sempre se repetem. Tragédias urbanas em
áreas de risco, à beira de corpos d’água, em encostas de morros e fundos de
vales ocorrem periodicamente de forma prenunciada e em diversas áreas do país.
O que mais incomoda, além do profundo
mal estar gerado pelo próprio fato em si, é a coexistência de elementos que,
invariavelmente, conduzem a estes eventos trágicos.
Ainda nas décadas iniciais do século
XX, quando da migração mais intensa de populações rurais para áreas urbanas, a
inexistência de uma política governamental de apoio aos mais carentes produziu,
nas grandes cidades, a intensificação de ocupações multifamiliares em lotes
unifamiliares, resultando em condições de vida extremamente precárias sob todos
os aspectos que consideramos fundamentais para a dignidade humana.
Multiplicaram-se as construções de
barracos em mesmo lote, constituídos por um só espaço para todas as funções
habitacionais, em geral com banheiro único, para uso coletivo nas “áreas
comuns”.
Nas favelas já existentes, aumentavam,
consideravelmente, as construções de barracos insalubres, fixados lateralmente
entre si para que não ocorressem desabamentos individuais. Nestas áreas,
situadas nas encostas de morros, eram instaladas, nas bases destes morros,
bicas coletivas para fornecimento de água.
O acesso a este “serviço” ocorria
através de um travessão de madeira, com uma lata de cinco quilos fixada de cada
lado. As pessoas desciam o morro por estreitas vielas cobertas por lama
escorregadia. Aguardavam a sua vez em longas filas e, em seguida, tomavam o
caminho de volta, a subida, de forma bem mais penosa.
As ocupações irregulares se
intensificaram também nas pequenas e médias cidades, tomando margens de rios e
corpos d’água menores.
A desatenção com estas ocupações que se
avolumavam no decorrer dos anos transmitiu a imagem de um país omisso em
relação ao bem estar de seus habitantes e, tão grave quanto, em relação à
integridade de seu meio ambiente natural, na medida em que a indignidade das
condições de sobrevivência humana caminhava ao lado da destruição de áreas
ambientalmente sensíveis.
Urbanistas sempre existiram e órgãos
governamentais também. Portanto, onde estavam todos? Onde foi deixada de lado a
ideia de fomentar ações para a fixação do homem ao campo, à sua terra, à sua
cultura e à sua história por várias gerações?
Onde foram guardadas as pesquisas
censitárias que demonstravam o crescente êxodo populacional e a implantação
crescente de moradias incompatíveis com o bem estar humano nas áreas urbanas?
O Brasil de antigamente cometia um
pecado muito grave – a subdivisão do povo em classes sociais diferentes era
rígida o suficiente para criar fortes barreiras interpessoais, profundamente
preconceituosas, fossem na relação entre patrão e empregado, fossem entre
crianças de escolas voltadas para clientelas diferentes, fossem entre bairros,
enfim, em qualquer âmbito.
Neste contexto, a classe dominante
fechava-se em si mesma. Nesta classe estavam os governantes, muito mais
preocupados com a manutenção dos seus status sociais do que imbuídos da
obrigação de interferir positivamente nas condições de vida da população que os
elegeu.
Houve quem se atrevesse a criar
programa que objetivava a construção de casas populares. Mas poucos atingiram o
seu objetivo. Em geral, de “barraco” em “barraco” construído na mídia, as
intenções não se concretizavam plenamente.
Os acontecimentos e resultados do
passado, ainda em processo no presente através das migrações e do crescimento
vegetativo da população, nos permitem afirmar que a tragédia é anunciada e
repetitiva.
A atitude de instalar sirenes em
comunidades localizadas em áreas de altíssimo risco é apenas paliativa, para
não dizer coisa mais grave. Cada vez que soam querem dizer: “Corre daí Nhonhô,
que lá vem terra”. Mas correr para onde? E logo voltam até a tempestade
seguinte – quando conseguem sobreviver para voltar.
O incrível e estranho é que começam a
surgir, nestes locais de risco, hospedarias que se denominam “Favela Inn”, em
busca de turistas desavisados, atraídos pelo belo visual de cima do morro.
Será tão difícil entender que na base
destas ocorrências perversas está o descaso com as pessoas economicamente mais
frágeis? Será que não se percebe que a invasão desenfreada de terras públicas,
sobretudo em áreas de risco, decorre do binômio falta de emprego ou de
qualificação profissional/altos preços dos imóveis urbanos? Não é possível
reproduzir o lava-mãos pilatiano.
Certamente, o conhecimento da
fundamentação das tragédias em questões econômicas e sociais é fartamente
delineado em todas as consciências. Desafortunadamente, no Brasil, peca-se
muito pela busca de soluções quando a porta já foi arrombada, quando a pressão
das carências já não admite soluções paliativas e até cruéis, incompatíveis com
a condição humana.
De nada adianta criar dispositivos
legais, de forma isolada, que proíbem e punem iniciativas de invasão de terras.
Leis desta natureza são fundamentais, desde que inseridas em um contexto muito
mais amplo, onde estejam ativamente presentes os condicionantes de
desenvolvimento econômico e social. Quando se delineie, com precisão, as
ocorrências passadas, as atuais e as projeções futuras, suas causas e
consequências e as possibilidades concretas de intervenções urbanas e rurais
para que, pelo menos, o caminho correto seja encontrado.
Após tantas décadas de acontecimentos
trágicos, de tantos equívocos na gestão de meios capazes de prover o bem estar
das populações mais carentes, não é possível que seja mantida a antiga postura
de ignorar a capacidade, já histórica, de acesso à moradia digna, do direito ao
trabalho, à saúde, à segurança, enfim, ao respeito humano e ao meio ambiente.
Que o urbanismo seja exercido em sua
plenitude, assumindo a visão do todo e não de partes pré-definidas por
interesses outros que não os essencialmente eleitos por quem não domina este
ramo do conhecimento.
Que soem sirenes, mas exclusivamente na
consciência de cada um.
O apelo ao turismo em locais de risco,
chamando a ação de “empreendedorismo” – Favela Inn, Hostel Favela Residence
Resort – na verdade equivale a desconsiderar a realidade onde nenhuma segurança
é garantida. Como se garante a integridade física de alguém se não é possível
garantir a integridade nem mesmo da própria edificação?