Há vários anos, o esforço governamental para garantir a
correta implantação do projeto urbanístico referente ao Plano Piloto de
Brasília poderia ser denominado como caminho para um objetivo “pétreo”.
Nas décadas de 60 a 90 foram exercidos trabalhos contínuos
que abrangiam desde a criação de parâmetros arquitetônicos e urbanísticos
fundamentados na observância ao Plano Urbanístico até a fiscalização rigorosa
das edificações em construção ou já construídas.
Estas verificações ocorriam sob os pontos de vista da
ocupação do lote ou projeção, dos coeficientes mínimo e máximo exigidos, do
respeito aos demais índices, da destinação, dos cercamentos e da estrita
coerência entre o projeto arquitetônico aprovado e a obra, além de outros
aspectos peculiares a determinadas unidades imobiliárias.
Este contexto de controle absoluto garantiu, exceto em
alguns casos pontuais refratários, que o Plano Piloto assumisse as
características estabelecidas em seu projeto, culminando com seu tombamento
como patrimônio da humanidade.
Entre estes cuidados incluem-se os lotes localizados nos
setores comerciais locais norte e sul e as quadras 700 que tinham modelos
prontos, invariáveis, definidores de como deviam ser projetados e construídos.
Nos comércios locais, além dos programas e espaços
invariáveis também havia o prévio levantamento das cotas de soleira, de
coroamento, do nível das galerias onde as marquises deveriam ser contínuas nas
várias edificações, perfeitamente alinhadas entre si, com as mesmas
profundidades, larguras e espessuras. Os pisos no nível das calçadas eram
igualmente contínuos, sem ressaltos ou degraus.
Nas quadras 700, norte e sul, onde a soleira e o coroamento
foram igualmente predefinidos, ainda são encontradas muitas residências,
construídas àquela época, que mantiveram o modelo arquitetônico estabelecido.
Se os espaços internos permaneceram inalterados, certamente ainda atendem,
tanto tempo depois, às necessidades dos atuais moradores.
A firmeza do controle urbanístico sobre o Plano Piloto e das
características dos espaços internos das edificações foi, a partir da década de
90, gradualmente arrefecida. A essência contida na legislação manteve-se
intacta, mas algumas concessões foram feitas, objetivando atender a
condicionantes locais específicos.
Nas quadras 700, a despeito da grande resistência imprimida,
foi autorizado o segundo pavimento. Mas, temos que admitir que em certos casos
a decisão foi equivocada. Tomando como exemplo um lote de 170m², alcançar uma
área construída de aproximadamente 300m² permitiu alguns desvios no uso do
lote, tornando-se coletivo onde deveria ser exclusivamente residencial
unifamiliar.
As consequências deste desvio são suficientemente
conhecidas. Causam pressão sobre a inexistência de estacionamento público em
quantidade que assimile a sobrecarga, além do acréscimo na demanda por serviços
de fornecimento de energia, água e
esgotamento sanitário.
Existem, em outros setores, circunstâncias em que a
topografia local permitiu a introdução de mais um pavimento, mantendo-se as
mesmas cotas verticais exigidas.
Dependendo do uso/atividade a ser efetivamente implantado
nestes locais e da quantidade de edificações existentes – quase tudo é
transformado em uso residencial coletivo, considerada a demanda por unidades
residenciais no DF – é possível associar o pavimento a mais ao acréscimo
populacional. E a consequência sobre os serviços públicos é inevitável.
Não se trata de opor-se à maior flexibilidade dos parâmetros
urbanísticos. Muito ao contrário, as mudanças são essenciais à dinâmica urbana.
A realidade objetiva se reinventa continuamente, submetida à renovação dos
padrões culturais, sociais e até mesmo psicológicos.
Da mesma forma, uma decisão que em determinado momento
parece acertada pode posteriormente ser inadequada, quando os fatores antes
irrelevantes ou inexistentes passam a interferir drasticamente sobre a análise.
Antes, o elenco de aspectos considerados nos estudos associava-se a uma lógica
intrínseca. Mas “bola de cristal” não se inclui entre os instrumentos.
Entretanto, uma flexibilidade, em especial, tem se demonstrado
muito positiva – o tratamento das áreas verdes públicas.
No mesmo período, entre os anos 60 a 90, a rigidez dos
parâmetros normativos proibia que a população interferisse com as áreas verdes
externas aos lotes e projeções. Apenas projetos governamentais podiam definir os
espécimes introduzidos naqueles locais. E até o posicionamento.
Mas como foi maravilhoso o desrespeito a estes parâmetros!
(com o devido respeito aos que defendem o impedimento de espécimes consideradas
invasivas)
Hoje, mesmo em curtas caminhadas por estas áreas,
constatamos que a população introduziu inúmeras flores, arbustos e árvores. São
azaleias, antúrios, patas de vaca, amoreiras, chorões, jasmins e muitos outros
adornos sobre as áreas verdes.
Observando a exuberância destas plantas, concluímos que além
de plantar também cuidam.
“Santa” desobediência! Que assim continuem tanto os
conscientes da antiga proibição quanto os que jamais ouviram falar sobre o
assunto.