terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O Arquiteto e o Cliente – A Difícil Relação

    

O desenvolvimento de um projeto arquitetônico, embora ato solitário em sua execução implica na convergência de fatores envolvendo as necessidades e aspirações do proprietário da futura obra, da adequação destes fatores aos princípios, parâmetros e critérios estabelecidos pelas legislações urbanística e arquitetônica, aos condicionantes ou limitadores estruturais e construtivos, além das relações com o entorno.
O primeiro fator – necessidades e aspirações do proprietário – envolve, por sua vez, aspectos de natureza cultural, educacional, social, econômica e psicológica, variáveis extremamente importantes na definição de um projeto que, de forma peculiar a cada caso, promoverão os resultados sob os pontos de vista da forma e da função.
Não raro, o desconhecimento da legislação impele o cliente a exigir do arquiteto propostas arquitetônicas incoerentes com as limitações do possível para determinado lote. Neste ímpeto, lança no papel rascunhos a que chamam de projeto, supondo ser o arquiteto um mero “desenhador” de sua criação, apta a ser aprovada pelo poder público.
O limite entre as opções de atender o usuário em seu programa de necessidades e de apenas representar graficamente a sua vontade é zona obscura, aonde o arquiteto se conduz de acordo com a sua habilidade em convencer o cliente sobre a adequação formal–funcional e legal da proposta. Neste exato momento, interagem os instrumentos determinantes da competência do arquiteto: a experiência adquirida, o conhecimento da legislação aplicável, além de fatores relacionados aos aspectos sócio-econômicos, psicológicos, culturais e ambientais.
Não é por outra razão que nesta área pululam falsos profissionais, assumindo ares de arquiteto, prometendo elaborar projetos e até mesmo construir obras, sem que jamais tenham colocado os olhos, mesmo que de esguelha, sobre os princípios fundamentais da arquitetura e do urbanismo e de seu complexo arcabouço teórico – prático.
A experiência aqui abordada provém de longos anos de atuação na ponta do sistema, para onde convergem projetos, profissionais e falsos profissionais.
As situações podem ser claramente agrupadas por contextos específicos: Há o profissional atento e consciente de sua função, há o profissional menos atento, que a pretexto de atender o cliente, talvez por medo de perder o trabalho, falseia as informações do projeto e há os não profissionais, lamentavelmente muito procurados, que fazem qualquer coisa. Mentem, enganam (ou tentam enganar). As mentiras iniciam na própria autoria do projeto, é claro, assinada por profissional com registro, portanto legalmente habilitado, mas que sequer conhece o conteúdo do projeto, nem mesmo o endereço da futura obra.
Os problemas surgem e se avolumam nos dois últimos contextos. O profissional inconsciente, ao deparar-se com a impossibilidade de aprovar o seu projeto, inicialmente tenta convencer o outro arquiteto, que vê como opressor, de que o seu projeto não é aquilo que claramente é. Sem êxito, passa para a segunda fase, procurando instância hierarquicamente superior dentro do sistema governamental, indo desde a chefia imediata até o titular do órgão, como forma de exercer pressão funcional sobre o arquiteto que recusou a mentira.
Outros, não se dão a todo este trabalho. Sem sequer comparecer ao local devido – costumam fazer do proprietário o seu mensageiro – descarregam a sua raiva em documentos infames, de enorme agressividade e vulgaridade, onde lançam dúvida até mesmo sobre a habilitação profissional do arquiteto que frustrou a sua intenção (mas é o proprietário quem faz a entrega do documento). Lamentável!
O terceiro caso, talvez o que gere riscos mais graves, são os não profissionais. Estes, em circunstâncias de frustrações, explodem em insultos verbais. Há tentativas de agressão física.
Na base desta estrutura caótica estão os altos valores do metro quadrado urbano, induzindo a dois fatores: À cobiça pelo aluguel ou pela solução de abrigo doméstico, em mesmo lote, de vários familiares.
Quem deseja transformar um reduzido lote (no Guará, de 120 a 200 metros quadrados) em espaço multidomiciliar, certamente é avesso à  convivência, em condições satisfatórias, sob os aspectos da densidade populacional e suas conseqüências. Não se importa se o somatório das superposições residenciais em mesmo lote, em caráter repetitivo pela cidade, resultará em subdimensionamento de redes de serviços públicos e de sistema viário. Não se importa, nem mesmo, com o fato de inexistir previsão para a demanda de vagas para veículos em via pública, em frente à sua própria casa.
Quem aluga ou compra unidade irregular também não se isenta de culpa. Lamentavelmente, só se interessa em solucionar a sua questão habitacional.
Se o proprietário que anseia pela irregularidade encontrasse uma barreira profissional de respostas negativas uniformes, certamente muitas irregularidades não permeariam o tecido urbano. A decisão de agir por conta própria é muito difícil de ser tomada diante dos múltiplos riscos e prejuízos decorrentes. Não prescindem de um profissional, ou não profissiona,l como bengala a seu lado.
Em síntese, não basta saber projetar. Desenhar pode ser algo fácil, sobretudo diante das novas possibilidades tecnológicas e seus programas de informática. É imprescindível a formação, o preparo, a consciência, a bagagem técnica e os princípios teóricos em constante processo reavaliação diante da dinâmica urbana.

domingo, 18 de dezembro de 2011

O Sistema Viário do Guará – Complexidades Atuais e Futuras.

            
            Cidade relativamente antiga, instalada na década de 70, o Guará (I e II) foi muito privilegiado em seu sistema viário, mais especificamente em suas vias de atividades – as de contorno e central do Guará I e II e a EPGU ( Estrada Parque Guará).
            De larguras consideráveis – a de contorno e a EPGU possuem, em média, 17m em cada sentido e as centrais, 12m – seria de se esperar um fluxo viário sem impedimentos. Contudo, não é exatamente isto que ocorre.
            Em função das proximidades da Estrada Parque Taguatinga, a EPTG, no lado Norte do Guará I, da própria EPGU, no lado Leste do Guará II e dos acessos ao Park Way e Setor Habitacional Bernardo Sayão, o Guará tornou-se “praça” de distribuição de trânsito, recebendo e encaminhando veículos ao Plano Piloto, Taguatinga, Águas Claras, Núcleo Bandeirante, Candangolândia, além do Park Way e Setor Habitacional Bernardo Sayão. Todas estas áreas, locais de alta densidade e atração de veículos.
            Como conseqüência desta centralidade, já não é possível afirmar que existe dimensionamento adequado de suas vias, tendo por base apenas a população residente em seus limites geográficos. Situação complexa, se considerarmos a futura densidade prevista de, espera-se, 170 000 habitantes, proporcionada pelo acréscimo do coeficiente de aproveitamento e flexibilidade de uso, ocorrência no PDL e EIV aprovado que permitiu mais 14 edificações destinadas a Habitação Coletiva, com áreas e número de unidades habitacionais bem superiores às pré-existentes.
            Considerando apenas a região onde se localiza o Guará I e II, os altos coeficientes de aproveitamento resultarão em cerca de 24 000 novos apartamentos, se as áreas destas unidades residenciais forem de 68 metros quadrados (como em geral o são).
            Se nos basearmos na possibilidade de existirem apenas dois veículos por unidade domiciliar, então o acréscimo será de 48 000 novos veículos. Considerando que o anel viário do Guará II tem área de circulação de 492 080 metros quadrados, e a futura ocupação soma 583 824 metros quadrados, para os novos veículos só o anel de contorno estaria com uma defasagem de cerca de 20 por cento em relação às dimensões necessárias.
            Apesar de esta expectativa ser apenas um exemplo rígido, há que se considerar que o Guará I e II possui 15 944 unidades imobiliárias destinadas à habitação unifamiliar e 183 lotes destinados à habitação coletiva. Sem considerar, neste cálculo, os lotes destinados ao uso comercial, onde é possível uma residência unifamiliar por unidade e as obras irregulares, sobretudo no Pólo de Moda e QE 40, transformados em aglomerados de quitinetes.
            Tendo por fundamento estes números, prevendo um cenário atual modesto, de apenas dois veículos por residência, já existiriam cerca de 70 000 no Guará I e I. Somados aos resultantes das novas ocupações, (48 000) atingiríamos um total (ainda modesto) de 118 000 veículos. Mas neste cálculo ainda não consideramos o Setor Habitacional Bernardo Sayão, nem as futuras ocupações – QE 48 a 60, Setor Jóquei Clube, Setor Quaresmeira e o Centro Metropolitano.
            O acréscimo no volume de veículos, somado aos provenientes das outras cidades do Trecho Sul do Distrito Federal, mesmo sem referência a números, nos oferece um preocupante quadro do futuro deste Núcleo Urbano.
            Evidentemente, algo deve ser feito. E rápido. Se hoje não é possível circular livremente nos horários mais densos, pelo balão do Guará II em direção ao Plano Piloto, pela via de acesso ao Núcleo Bandeirante que interliga estas duas cidades ao Park Way e Bernardo Sayão. Se representa um exercício de paciência ir da via central do Guará I à via de contorno do Guará II pelo cruzamento do metrô, o que esperar do futuro próximo...
Poderemos aguardar que a situação se complique e se emaranhe em suas próprias teias, ou devemos rever alguns conceitos básicos do planejamento urbano, do adensamento de áreas consolidadas para a redução de custos com equipamentos públicos e comunitários. O malefício não é compensado pela economia de gastos.
Já é hora , até tardia, de nos anteciparmos aos problemas, não mais esperando que surja para buscar a solução. Isto é planejamento. Sobretudo quando a intervenção incide em adequar uma estrutura mais antiga à nova dinâmica de uso.
Os exemplos que nos chegam da natureza são de imensa sabedoria. Para que a árvore dê frutos é necessário lançar as sementes, cuidar do crescimento e depois florir. Sem cuidados não existe colheita.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

A Cultura Arquitetônica e Urbanística e sua Manifestação no Distrito Federal

Cultura é definida como “O complexo dos padrões de comportamento, das crenças, das instituições, das manifestações artísticas, intelectuais, etc., transmitidos coletivamente, e típicos de uma sociedade”. E também: “O conjunto dos conhecimentos adquiridos em determinado campo” (Dicionário Aurélio).
O PDOT, em seus Arts. 9º e 10º, define patrimônio material – um dos elementos estruturadores do patrimônio cultural – como elemento portador de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos sociais, abrangendo expressões, transformações de natureza histórica, artística, arquitetônica, urbanística, científica e ecológica. Se traduz em obras, objetos, documentos, edificações, espaços para manifestações artístico-culturais e em conjuntos urbanos que representem este patrimônio.
Contudo, só são “oficialmente” considerados bens de interesse cultural aqueles tombados ou registrados pelos órgãos competentes, Federal ou Distrital, ou indicados por legislação específica.
Neste contexto de definições, podemos então considerar a arquitetura e o urbanismo no Distrito Federal como elementos culturais, na medida em que representam um padrão de manifestação artístico-intelectual típico de nossa sociedade, enquanto conjunto de conhecimentos adquiridos e transmitidos nestas áreas específicas. Traduzem a identidade, a ação e a memória dos nossos diferentes grupos sociais.
Entretanto, de acordo com o mesmo PDOT, só assim podem ser considerados se devidamente tombados ou se forem indicados por legislação específica.
A questão cultural brasileira, como sabemos, é assunto de extrema complexidade, tendo como princípio a afluência de raças como acontecimento base de nossa formação e identidade.
A este aspecto de profunda diversidade étnica, acrescentem-se as diferenças sócio-econômicas, além das características próprias de cada grupo, em conformidade com cada região, cada município, cada cidade e até mesmo cada pequena localidade e sua história de criação e características ambientais.
A arquitetura e o urbanismo no Brasil surgiram de duas formas muito peculiares, desde o início já retratando, fielmente, a diversidade cultural e sócio-econômica.
As cidades eleitas como capitais foram construídas sob orientação da Arquitetura e Urbanismo portugueses, enquanto os demais núcleos surgiam através do barro amassado e moldado, compondo espaços urbanos aleatórios, decorrentes da improvisação, das necessidades construtivas e dos desníveis dos terrenos e outros aspectos ambientais.
Às cidades mais importantes podemos atribuir a denominação de concepção oficial. Quanto às demais, talvez seja lícito concluir que surgiram de realidades física e cultural baseadas em programas de sobrevivência, com diferenças em relação à capacidade econômica e posicionamento social de seus proprietários, muitos deles capazes de trazer da “cidade grande” elementos construtivos e materiais compatíveis com as obras que admirava, símbolos de suas condições sócio-econômicas.
A modernidade na Arquitetura trouxe consigo o aprimoramento tipológico das edificações mais importantes dos centros urbanos de maior porte e significado. Simultaneamente, permitiu a construção em série das casas populares para a população de baixa renda. Ao mesmo tempo, o traçado urbano passou a ser mais intensamente caracterizado pelo sistema viário em formação. Mesmo que o trânsito de veículos fosse muito rarefeito, como nos subúrbios do Rio de Janeiro, as vias estavam ali presentes, e devidamente hierarquizadas. Já nos primeiros momentos da arquitetura e urbanismo brasileiros, a leitura que a população fazia de seus espaços era muito nítida.
No meio rural, havia a casa da fazenda, as “acomodações” dos escravos e as casas dos empregados. Ao mesmo tempo, haviam os palácios oficiais e as casas da cidade, em geral sobrados de propriedade dos comerciantes e funcionários do Estado.
Na modernidade, a arquitetura oficial assimilou as transformações tipológicas e construtivas de origem européia. Ao lado destas modificações, a arquitetura residencial adequou-se aos novos princípios, com relevo nas superquadras de Brasília, coexistindo com a concepção inovadora da quadras 700 norte e sul. Nos demais Estados, permaneceu, enquanto dado cultural, o modo de fazer coerente com as diferentes culturas locais, reflexos que se fizeram sentir nas residências do Lago Norte e Sul e Cidades Satélites e sua arquitetura de telhados coloniais e programas diferenciados em relação ao caráter ortogonal e de leitura clara das habitações do Plano Piloto.
A atualidade se reveste de características bem mais complexas, onde os fatores culturais caminham lado a lado com as imensas necessidades de atendimento à crescente demanda por habitações.
No caso específico do Distrito Federal, a arquitetura das habitações coletivas carrega em si princípios tipológicos da arquitetura moderna, da repetição de módulos horizontais e verticais que permitem a rápida execução das obras. As habitações unifamiliares, bem diferentemente, permanecem de acordo com modelos referidos a hábitos culturais profundamente arraigados, quer em relação às técnicas construtivas, quer em relação ao programa arquitetônico. A pesquisa encontra-se  muito restrita às empresas de construção civil, submetidas aos fatores econômicos e de rapidez de execução.
A arquitetura oficial, hoje traduzida em equipamentos públicos comunitários, igualmente sofre intensa pressão dos mesmos fatores intrínsecos às empresas de construção civil. Considerando que estas obras são sempre terceirizadas por licitação, o sistema construtivo e os materiais são também resultado de pesquisas para atendimento ao programa requerido em cada caso.
Ao lado desta realidade, o traçado urbano do Distrito Federal reflete diferentes objetivos.
O princípio gerador do Plano Piloto, o Relatório de Lúcio Costa, definiu as escalas de macro funcionamento urbano e os setores que estruturam as escalas. Em decorrência, o Plano Piloto tem característica urbana diferenciada, fato que atribuiu a sua poligonal as condições de tombamento nacional e mundial.
As Cidades Satélites, por outro lado, representavam, no início da construção do Plano Piloto, apenas núcleos de apoio à população que veio trabalhar nas obras da Capital. Por esta razão, as características urbanas e arquitetônicas equipararam-se, do ponto de vista cultural, à leitura específica de outros Estados do país, de outras localidades mais afastadas dos respectivos centros político-administrativos.
Talvez possamos afirmar que o Plano Piloto foi a pérola encerrada na ostra e as demais cidades reproduziram a diversidade da cultura marinha considerados, até mesmo, alguns aspectos interessantes visualizados na pérola.
O Distrito Federal hoje, sabemos, possui profunda diversidade cultural. Mas duas questões necessitam ser colocadas: por um lado, a tecnologia aplicada às construções de habitações coletivas, facilitada pelas consideráveis alturas e densidades de ocupação permitidas pelos Planos Diretores Locais e de Ordenamento Territorial, resulta em edificações culturalmente associadas ao modo de fazer de obras oficiais e obras tombadas, distante da leitura que a população tem feito de seu espaço urbano e arquitetônico há dezenas de anos.
Por outro lado, será necessário prover as cidades das habitações requeridas.
Considerando este fator que exige resposta imediata e a concorrência dos aspectos econômico-sociais e culturais, cabe uma reflexão envolvendo todos os agentes envolvidos na obtenção de resposta pelo menos razoável:
* As consideráveis alturas das edificações destinadas à habitações coletivas, embora solucionem a questão relacionada ao número de unidades habitacionais requeridas para o DF (apesar dos preços proibitivos para a maioria da população, mas isso é outro assunto) reproduzem padrões da cultura oficial, extraídos da arquitetura moderna, portanto não convergem e não atendem à arraigada leitura da simbologia arquitetônica, de todos os usuários consideradas as múltiplas origens culturais.
* A repetição horizontal de modelos residenciais idênticos, na arquitetura de conjuntos habitacionais de interesse social, não atendem às diversas leituras das diferentes origens culturais, embora apresentem a mesma vantagem econômica e de rapidez e facilidade de implantação das habitações coletivas.
                   * Não é possível, considerada a atual carência por habitação, pensar em edificações culturalmente adaptadas, de forma absoluta, a cada grupo da sociedade, sob pena de ocorrer o engessamento impeditivo da produção habitacional.
Diante deste paradoxo, talvez não nos reste outra atitude senão buscar um alinhamento que una todas as pontas.
Por um lado, evitar os excessos referentes às alturas, descomunais e esmagadoras diante da desejável manutenção da escala que se possa chamar de humana, em respeito à essência de todos os indivíduos, usuários ou passantes. Por outro lado, implantar sistemas normativos de áreas residenciais muito mais voltados para a multiplicidade dos modos de leitura do espaço urbano e do espaço arquitetônico – aliás, muito se avançou desde as décadas de 60 a 80, a partir da possibilidade de emissão de visto para projetos arquitetônicos, abandonando os conceitos excessivos da arquitetura oficial – além de buscar o entendimento dos requisitos culturais, historicamente enraizados em cada cidade, na definição e na alteração do espaço urbano, independentemente da oficialização ou documentação, enfim, da formalidade aplicável ao que se considera patrimônio cultural.