quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O Arquiteto, o Urbanista, o Contador de Histórias e o Poeta




Muitas são as designações atribuídas aos arquitetos e urbanistas através do tempo. Mas todas são embasadas em suas atividades técnicas.

Por atividade técnica entende-se a perícia em determinado ofício, arte ou ciência. O técnico é o perito, o conhecedor dos caminhos e meandros que levam a determinado resultado.

Em arquitetura e urbanismo, o técnico reúne e articula os conhecimentos que detém sobre a criação de espaços e a interação entre eles, integrando estes elementos na conformação do todo, seja uma edificação ou um conjunto delas, seja um trecho de núcleo urbano ou uma cidade por inteiro.

Neste processo incluem-se diversos fatores e seus diferentes aspectos, desde que os culturais, artísticos e sociais até os econômicos, políticos, tecnológicos e legais, sob a ótica do tempo e lugar. O objetivo é o resultado melhor possível, dentro dos pressupostos fundamentais que permeiam todo o processo, minimizando ao máximo os impactos negativos que qualquer intervenção repica sobre a realidade urbana.

A visão atribuída ao técnico, arquiteto e urbanista, sempre se baseia nas linhas traçadas sobre o papel, determinantes da transformação do vazio, em espaços materializados em elementos construtivos, seja um lote ou qualquer área desocupada.

Mas não se pode restringir a visão apenas aos resultados. Aos profissionais de arquitetura e urbanismo cabe a responsabilidade de transitar por um vasto universo repleto de opções, acolhendo ou rechaçando possibilidades, subordinando as escolhas ao arcabouço estabelecido pelos objetivos a atingir, pelos meios disponíveis, pelo tempo e lugar da intervenção.

Exatamente neste ponto, repleto de interrogações, a atividade do técnico mergulha no tempo do contador de histórias.

Não se pode atuar sem conhecer as características de uma cidade, as razões daquelas características, o modo de ver e apreender a que a população se habituou – fator dependente da sua história.

Ao urbanista que propõe as normas de uso, ocupação e parcelamento do solo, o conhecimento aprofundado da história da cidade, incluindo o que foi realizado de maneira positiva e o que impactou negativamente é fundamental para o lançamento da perspectiva, da visão a médio e a longo prazo, reduzindo significativamente as possibilidades de resultados indesejáveis.

Neste momento exato é que o urbanista revela a face do contador de histórias, num conto codificado urbano e regional.

A história é contada através do Memorial Descritivo que acompanha e integra o Projeto Urbanístico e revelada nos índices adotados.

Ao urbanista também reserva-se a face poética. O modo de organizar, de justapor, de aproximar, de abrir e fechar espaços, de definir horizontes , alturas e volumetrias, de criar as áreas verdes, os percursos de veículos, os caminhos dos pedestres, revelam uma face estética complexa que resulta no modo de viver de uma população, definindo a sua qualidade de vida, estabelecendo os fundamentos de seu bem estar.

Ao arquiteto e ao seu modo de edificar atribui-se a dimensão do contador de histórias no momento em que traduz os princípios de uma cultura, em seu espaço e tempo. Neste processo transmite, de forma construtiva, toda a bagagem historicamente acumulada da maneira de morar, trabalhar, divertir-se, estudar e outras atividades culturalmente instaladas.

A dimensão poética do seu exercício profissional é traduzida no resultado estético de sua obra, uma poesia verticalizada sobre o solo, dotada de ritmo, rima, estrofes e movimento, quase uma música, suave e vigorosa aos sentidos de quem quer ver e ouvir.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A Frente e o Fundo das Edificações



O entendimento de frente e fundo de lote está vinculado, do ponto de vista da Legislação, à localização da via de acesso de veículos à unidade imobiliária. Se um lote tiver duas ou mais divisas margeadas por vias de circulação de veículos, será considerada como divisa frontal do lote aquela de menor dimensão. A via de circulação de veículo frontal a esta divisa será, então, a via de acesso.

A distinção entre frente e fundo de uma edificação reveste-se de algumas diferenças em relação aos critérios atribuídos ao lote: a frente da edificação pode não ser coincidente com a frente do lote.

Um lote margeado por duas vias de circulação de veículos pode ter a frente da edificação, o mesmo que fachada principal ou frontal, voltada para a via por onde não ocorre o acesso de veículos. Situação semelhante pode acontecer se o lote tiver uma lateral voltada para a área pública, caracterizada como área verde e/ou local de circulação de pedestres, quando a fachada frontal pode estar voltada para esta área. Em ambos os casos, esta possibilidade deve ser admitida pela Legislação de Uso e Ocupação do Solo aplicável ao lote, que também determinará a obrigatoriedade, ou não, do acesso de veículos ocorrer, exclusivamente, através da divisa frontal do lote, aquela de menor dimensão.

Nas cidades brasileiras, lamentavelmente, as edificações sempre tiveram marcas precisas quanto à caracterização de frente e fundo, circunstância vinculada ao Programa Arquitetônico Culturalmente instalado.

A frente de uma residência unifamiliar é sempre reservada a zona social, para onde se voltam a sala de estar, a garagem e quartos. A zona de serviços relega-se ao trecho posterior da residência, onde se constroem a cozinha, a lavanderia, depósito, e outros compartimentos úteis e imprescindíveis, mas que não devem compor a fachada principal.

A frente é dedicada ao ajardinamento, ás calçadas e paredes de revestimento esmerado. Ao fundo, em geral invisível a quem chega ou passa, pouca atenção é dispensada. Em muitas circunstâncias, amontoam-se tranqueiras ao lado de varais, tanques e depósitos de lixo, transformando áreas de trabalho e de extrema importância funcional e vital em algo a esconder, incompatível com a aparência socialmente valorizada da frente da edificação.

Mas esta tendência não é restrita às habitações unifamiliares.

Nas grandes cidades podemos encontrar a noção de frente e fundo bem demarcada em habitações coletivas. Em bairros nobres da Zona Sul do Rio de Janeiro, as fachadas voltadas para avenidas de considerável renome são tratadas como poses de cartão postal, enquanto os encontros de fundos de duas ou mais edificações voltam-se para áreas livres descobertas, dotadas de guarda-corpos que transpassam a visibilidade de áreas de serviço, com tratamento arquitetônico capaz de desorientar quanto a se estar na mesma edificação que se viu para frente.

O princípio urbanístico que norteou a construção do Plano Piloto de Brasília quebrou a identificação frente/fundo tanto nas edificações destinadas às habitações unifamiliares localizadas nas quadras 700 Norte e Sul, quanto nas habitações coletivas nas duas asas.

As residências das quadras 700, geminadas e com 100% de ocupação do lote, têm as fachadas denominadas frontais voltadas para as áreas verdes. Por onde não pode ocorrer o acesso de veículos.

Contíguas a estas frentes, conforme exigido pelo primeiro Código de Edificações de Brasília, era obrigatório a construção de uma sala e um quarto.

Os compartimentos localizados no trecho posterior da edificação, também por obrigatoriedade eram a garagem e o quarto.

Além destes requisitos, onde se incluía, ainda, a existência de um grande prisma de iluminação e ventilação (com dimensionamento pré-definido), para atendimento aos quartos, cozinha e área de serviço com janelas para ele voltadas, era obrigatório o tratamento adequado do fundo da edificação, de modo a não se diferenciar, em qualidade, do tratamento dado a fachada frontal.

As edificações iniciais destinadas às habitações coletivas, construídas entre os anos 50 e 80, diferentes de quaisquer outras até então construídas no Brasil, se caracterizaram por prismas de base retangular, sobre pilotis, pousados sobre o solo verde e distanciadas entre si de modo considerável.

Nestas edificações, a frente e o fundo tiveram tratamento diferenciado, de forma a adequar-se às funções dos compartimentos contíguos. A frente foi tratada por esquadrias envidraçadas de grandes dimensões, para atendimento de sala e quartos, enquanto o fundo foi, todo ele, protegido externamente por cobogós em toda a extensão da fachada, como anteparos às janelas nas áreas de serviço e cozinha.

Para este fundo também foram lançadas as torres de circulação vertical, ocupando área além do limite da projeção, caracterizadas como prismas de base retangular, visualmente encostados na edificação principal. Por suas consideráveis dimensões o acesso de veículos é vinculado ao ordenamento da circulação e não ao posicionamento da frente da projeção.

Aparentemente, pouco se entendeu a respeito do sutil tratamento dado às edificações erguidas naquele período. Não demorou muito a se avolumarem as pressões pelo acréscimo de unidades domiciliares nas habitações coletivas, que de vazadas passaram a dispor de apenas uma fachada, a frontal, para onde se voltam a maioria dos compartimentos, inclusive cozinhas e áreas de serviço, sempre em ambiente único para facilitar o acesso à iluminação e ventilação. Estas soluções se repetem não apenas no Plano Piloto, mas em outras cidades do Distrito Federal. Nas soluções mais elaboradas, as áreas de trabalho se localizam em reentrâncias pouco visíveis, resultantes do mecanismo da compensação de área.

Nas habitações unifamiliares, localizadas nas outras cidades do DF repetiram, em inúmeros casos, a mesma trajetória brasileira do fundo menosprezado. Em muitas localidades, ou em quase todas, as áreas livres posteriores à edificação possibilitaram a construção dos lamentáveis “barracos de fundo”, a serviço de ganhos financeiros extras por meio do aluguel, repetição perversa das vilas encontráveis em cidades mais antigas.

Não se trata de enaltecer soluções arquitetônicas associadas a classes sociais mais privilegiadas, nem posicionamento nostálgico em relação ao passado. A reflexão sobre o antigo e inadequado descaso com o fundo das edificações e contrapô-lo à noção de que o tratamento do fundo pode ser diferente, mas que em nada pode dever ao tratamento dado a frente talvez contribua, pelo menos em parte, para a valorização funcional e estética da obra arquitetônica em sua totalidade. Infelizmente, nem sempre é possível proceder como as plantas que, em sua profunda grandeza, enraiza os seus serviços.