Executar uma obra é ato que requer garantias de atendimento às necessidades do usuário, sob os pontos de vista dos requisitos, pelo menos básicos, de sua dinâmica de viver, garantindo a imprescindível atenção aos direitos da coletividade.
Os condicionantes são relacionados aos hábitos de indivíduos, resultados de sua cultura, seja própria de todo um país, seja de regiões, Estados ou cidades específicas.
Há vários anos atrás, em função das péssimas condições de saneamento básico, em muitas regiões do País construíam o sanitário isolado do corpo da edificação residencial. Este compartimento, por muitos chamado “casinha”,era constituído por um barracão em madeira, há cerca de 40cm do nível do solo, acessado por uma pequena escada. O seu interior continha uma caixa ou um vaso sanitário aberto em sua face inferior, por onde caíam os dejetos.
Quando lançados sobre o chão, as galinhas soltas no terreiro se encarregavam do “serviço de limpeza”. Quando o lançamento era sobre córregos ou áreas alagadas, o resultado era um intenso mau cheiro e degradação do local, já que muitas “casinhas”, de diversos lotes, eram enfileiradas, espaçadamente, ao longo das áreas.
Curioso como este hábito comum em pequenas cidades brasileiras conviveu com o evento da implantação da arquitetura moderna no País, nas décadas de 1960 e 1970. Sair de Brasília em visita a estas cidades, localizadas no interior ou no litoral, em pleno apogeu do modernismo, era absolutamente chocante.
Imensa era a perplexidade pela constatação das diferenças entre a fachada urbana e arquitetônica da modernidade e as reais condições de saneamento básico do País.
Estas incoerências, lamentavelmente, são parte de nossa história.
Ainda no período colonial, a implantação das cidades administrativas, de urbanismo e arquitetura importados de Portugal, concedia às obras um ar senhorial, muito diferente do que acontecia nos pequenos lugarejos que, mesmo resultantes da política portuguesa de ocupação territorial, não continham construções pautadas por projetos. Subordinavam-se às necessidades imediatas, erguidas em materiais obtidos nos arredores da localidade.
A cultura do construir sem apoio técnico, muito provavelmente, tem estas raízes profundas, mas referenciadas a uma época quando não era possível o acesso a este serviço.
A grande maioria das cidades brasileiras surgidas espontaneamente, mesmo em períodos bem posteriores ao colonial, carrega em si o antigo e arraigado hábito da construção sem planejamento.
Não é de se surpreender a existência de imensa quantidade de residências com configuração repetitiva, onde quartos e banheiros se abrem diretamente para a sala de estar, cópias exatas que se desenvolvem até mesmo por bairros inteiros. A diferença entre uma e outra são os “puxadinhos” providenciados para melhor abrigar a família que cresceu, ou a construção de mais de uma residência no mesmo lote, com a mesma finalidade ou para a obtenção de ganhos financeiros através da exploração de aluguéis.
Incrivelmente, estas ocorrências são comuns até mesmo no Distrito Federal, não apenas nas cidades satélites, mas também no Plano Piloto, área tombada como Patrimônio Cultural da Humanidade por suas excepcionais características urbanísticas e arquitetônicas, onde lotes, apartamentos e casas são subdivididos, em absoluta oposição ao que exigem as determinações legais.
Em decorrência destes fatos, definir a densidade populacional alcançada em cidades brasileiras é atribuição de muita dificuldade. Mesmo os dados resultantes de pesquisas oficiais podem ser falaciosos, não por incúria do pesquisador, mas por omissão dos entrevistados, que cientes da situação irregular de seus lotes falseiam as informações sobre a coexistência de duas ou mais famílias em mesma unidade imobiliária.
Os resultados destes antigos hábitos são dramáticos para o planejamento urbano e regional.
Planejar o crescimento e o desenvolvimento de uma região ou cidade representa ordenar o espaço, de modo a garantir o bem estar da população sob os pontos de vista da oferta eficiente de serviços e equipamentos requeridos.
Para alcançar este objetivo, é necessário conhecer profundamente o campo de trabalho – o número de habitantes, as diferentes faixas etárias, as demandas por equipamentos comunitários e por equipamentos públicos. Além de outros condicionantes envolvidos.
Neste ponto reside a insegurança subjacente aos estudos e decisões. Como planejar, como propor intervenções se não é possível confiar totalmente nos dados fornecidos por pesquisas demográficas?
O terreno movediço pode arruinar anos de estudos. Pode tornar o diálogo com o meio urbano em monólogo técnico, tal a distorção imprimida pelas alterações construtivas irregulares.
Poderíamos pensar em obter cálculos mais confiáveis através da mensuração, em locais de destino, do que a cidade produz em termos de resíduos sólidos e líquidos. Mas, lamentavelmente, este dado não é confiável. Existem irregularidades construtivas também na condução deste assunto.
Recentemente, tomei conhecimento da existência de uma cidade litorânea onde foi aberto um canal, de pelo menos 10m de largura, interligando o mar a parte considerável do contorno do núcleo urbano. A finalidade do canal é possibilitar o lançamento de resíduos, lixo e dejetos, provenientes de residências, posto de combustível e outras edificações comerciais.
O resultado desta empreitada é o mau cheiro no local e nas proximidades, além do periódico retorno ao mar do lixo e dejetos. Nestas ocasiões, forma-se uma faixa de águas cinzentas, paralela à orla, com cerca de 100m de largura e mais de 1km de extensão. Mas nenhum aviso, obviamente, é emitido aos banhistas. Já existem relatos de doenças transmitidas pela contaminação.
Construir no Brasil, desde os tempos mais remotos até a atualidade, em muitos casos, tem assumido características de ações predatórias contra o direito coletivo e sobre o meio ambiente. Os objetivos são de ordem financeira, de interesse exclusivamente pessoal ou por desconhecimento, como no passado, das relações de causa e efeito.
O indicativo mais patente desta desordem historicamente arraigada é quando o interessado em determinada obra afirma ao agente público que quer sempre obter informações normativas por gostar de fazer tudo “certinho”. Se assim se manifesta é por ter conhecimento das inúmeras violações ocorridas em sua vizinhança. É quando a exceção confirma a regra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário