domingo, 30 de outubro de 2011

O Sistema Viário e o Cavalo

      

            O título pode parecer estranho. Mas é isso mesmo.
            A circulação viária - faz muito tempo - é utilizada por várias formas de deslocamento. A principal, motorizada, convive com algumas outras, de forma quase sempre conflituosa. Mas a constante relação entre as diferentes formas é submetida a estudos que minimizem as incompatibilidades, através da criação de faixas exclusivas, como ciclovias, corredores para transporte coletivo e pontos de travessia de pedestres, incluída a de pessoas com necessidades especiais.
            A forma de circulação que causa maior perplexidade, considerada a sua característica extemporânea, é a utilização de cavalos, inserida barbaramente neste sistema sem que qualquer legislação aborde o tema.
            Na verdade, nem sequer dirijo. Mas é exatamente o andar a pé e sua lentidão peculiar que oferece a visão privilegiada do olhar mais detido, mais rico em informações de várias naturezas, sobretudo urbanas.
            Neste contexto, é possível ver quantos veículos, em curto espaço de tempo, sofrem interferências negativas, e algumas vezes desastrosas ou até trágicas, das carroças que ainda circulam por nossas vias.
            O carroceiro, totalmente avesso e incapaz de compreender as leis que permeiam o ato de transitar pelo sistema viário sobem calçadas, restritas aos pedestres, invadem as travessias específicas, saem sem aviso de retornos, avançando à frente e veículos e interferindo com os fluxos, enfim, cometem todos o tipos de ações descabidas. E o pior, por ser mais cruel, retira do cavalo a sua grandeza histórica, construída através de milhares de anos de bravura.
            A proximidade entre quem caminha e a ocorrência permite sentir, como se em mim fosse, a covarde chicotada e a dor das pauladas, além do som do trote assustado, incerto, do ruído das patas que pisam retorcidas e escorregam no asfalto liso.
            Isto e maléfico, maldoso, maldito e revela, sobretudo, a face do descaso da sociedade, onde o avanço econômico, social, tecnológico e, pasmem, a complexidade das leis urbanísticas e ambientais não representam dados suficientes para proteger o belíssimo animal da sanha de seus condutores.
            Evidentemente, não bastam providências paliativas, como as que tenho visto desde algum tempo, como registros de carroças, cadastramentos de carroceiros e pseudo-orientação sobre a conduta adequada ao meio urbano.
 A questão é bem mais profunda. O tema é econômico, social, educacional, cultural, urbanístico e ambiental. Não se pode admitir o uso de animais para ganhos financeiros. Esta esfera já se foi. Perdeu-se no túnel do passado, quando a opção de deslocamento era apenas essa e os núcleos urbanos eram gerados a partir desse condicionante. Até onde vai o meu conhecimento, o trato adequado e amistoso do cavalo era questão de honra e orgulho.
O uso do animal não se justifica no momento da história em que vivemos. O argumento sobre a impossibilidade de orientar o despreparado carroceiro para atividade produtiva não se sustenta em um país onde as possibilidades de adaptação educativa crescem continuamente. Portanto, não entendo o motivo deste inconveniente tema não ser devidamente tratado por legislação e afastado definitivamente de nossas áreas urbanas.

domingo, 23 de outubro de 2011

Habitação Econômica no DF - Mudanças e Desvios

    

               O Código de Edificações do Distrito Federal define Habitação Econômica como unidade domiciliar que apresente área construída de até 68 metros quadrados e passível de ser edificada através de materiais e acabamentos de baixo custo.
         A despeito da referência a este tipo de material, o fator determinante do caráter econômico de determinada unidade domiciliar é a sua área construída.
         A razão de ter sido fixado este limite, por não conhecermos o registro justificativo, perdeu-se no tempo. Mas é possível tentar recuperá-lo com base nas possibilidades atribuídas às áreas mínimas de seus compartimentos:
          1. A Habitação Econômica deve conter, no mínimo, compatimentos ou ambientes para atividades de estar, repousar, preparo de alimentos, lavagem e limpeza e higiene pessoal.
           2. As atividades relacionadas no item 1 podem dispor das seguintes áreas e dimensões mínimas correspondentes a 75% das exidas para atividades não econômicas:

            . Sala de Estar: 9 metros quadrados.
            . Quarto: 7,5 metros quadrados.
            . Cozinha: 3,75 metros quadrados.
            . Área de Seviço: 3 metros quadrados.
            . Banheiro: Sem alteração de área, portanto, cerca de 2,64 metros quadrados.

            A soma destas áreas mínimas resulta em 25,89 metros quadrados. Se acrescermos 15%, referentes a paredes e circulações horizontais, atingimos a área de 29,77 metros quadrados.
            Esta seria, portanto, a área total mínima de uma residência econômica.
            A inclusão de três quartos nesta mesma unidade resultaria na área total de 47,02 metros quadrados, portanto ainda muito distanciados do mínimo de 68 metros quadrados atribuídos à residência econômica.
            Mesmo adicionando um quarto 4 metros quadrados) e um banheiro de serviço (1,60 metros quadrados), chegaríamos à área total de 53,46 metros quadrados, ainda muito aquém da área de 68 metros quadrados.
            A conclusão a que se chega é de ter ocorrido, inicialmente, uma fixação de área máxima para unidade domiciliar econômica sem a definição de áreas mínimas de compartimentos. Estes compartimentos, muito provavelmente, teriam as mesmas características dos construídos em habitações não econômicas. O limite de área era o princípio que condicionava à possibilidade de utilização de materiais e acabamentos de baixo custo.
            A partir desta  dedução, podemos então afirmar que o legislador, à época, fixou a área máxima com o objetivo de estabelecer limite para as construções econômicas passíveis de serem erguidas em determinados locais, quando então poderiam ser utilizados materiais e acabamentos de baixo custo. Por outro lado, a prévia classificação econômica de determinadas áreas, como às margens das vias L-2 Norte e Sul, era o condicionante fundamental para a adoção destes materiais, mesmo que as áreas das unidades domiciliares fossem superiores a 68 metros quadrados.
            O primeiro impacto sobre a natureza e características das edificações econômicas ocorreu quando o Código de Obras de 1982 estabeleceu áreas e dimensões mínimas para seus compartimentos.
            A partir deste momento, tornou-se clara a incompatibilidade entre a soma das áreas dos compartimentos e a área total da unidade domiciliar. O movimento pode ser facilmente identificado como em sentido contramão. A área da residência passou a ser a baliza, especialmente adotada em Habitações Coletivas, justificadora do seu caráter econômico, exatamente em função da inexistência de área mínima que limite as suas dimensões totais.
            Em decorrência desta alteração de abordagem, dificilmente uma unidade residencial atinge a área máxima de 68 metros quadrados. O principal relevo, via de regra, incide sobre as áreas mínimas dos compartimentos e no número básico de funções requeridas.
             Atualmente, outras duas novas formas de habitar economicamente foram admitidas pelo Código de Edificações: O apartamento conjugado ( o mesmo que quitinete) e o apartamento não compartimentado. 
              O apartamento conjugado pode ter dimensões de ambientes (áreas não compartimentadas) equivalentes a uma sala de 12 metros quadrados, somada a 60% das áreas exigidas para as demais atividades, desde que o ponto de partida não seja o adotado para funções de apartamentos econômicos. Ou seja, à sala soma-se 60% de um quarto de 10 metros quadrados e 60% de uma cozinha de 5 metros quadrados. A área de serviço é desnecessária, desde que haja um tanque na cozinha.  Considerando que o banheiro deve ser compartimentado, a unidade domiciliar resulta em 23,64 metros quadrados. Mas a sua área máxima não pode ultrapassar o limite de 40 metros quadrados. Obrigatoriamente, este tipo de apartamento não pode ser compartimentado em momento futuro.
            O segundo caso, a unidade que pode ser desenvolvida apenas em ambientes, exceto o banheiro, igualmente não pode se fundamentar em compartimentos econômicos. A sua área total é constituída, no mínimo, por espaços correspondentes a uma sala de 12 metros quadrados, a um quarto de 10 metros quadrados, a uma cozinha, juntamente com área de serviço, de 9 metros quadrados e um banheiro. Existe, ainda, a possibilidade de futura compartimentação, quando à área de 33,64 metros quadrados acrescente-se 15% para circulações horizontais e paredes, logo, a área mínima total pode chegar a 38,68 metros quadrados.
             Se o objetivo for, realmente, o bem-estar dos ocupantes da unidade domiciliar, é possível afirmar que a melhor opção é o apartamento sem compartimentação.O seu custo pode ser mais reduzido, os espaços são bem mais amplos por não se fundamentar em apartamento econômico, o que melhora as condições de habitabilidade. E ainda podem ser posteriormente compartimentados.
              Incrivelmente, nunca nos deparamos com uma solução desta natureza nos projetos arquitetônicos com que lidamos.
              Enquanto isso, proliferam os exíguos apartamentos econômicos, com seus quartos minúsculos e desconfortáveis, com áreas de serviço no mesmo espaço das cozinhas, embora funções tão opostas. Evidentemente, há muitos anos passou o momento de revisão normativa.

           

           

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

O Arquiteto e o Compromisso Profissional

             Ver para crer. Ditado popular de apenas dois verbos, que nos orienta sobre distinguir os acontecimentos e concluir a direção das consequências, com base em fatos anteriores, quando a vivência do tempo e espaço nos mostra o resultado futuro.
              O arquiteto, por sua formação privilegiada, um dos poucos profissionais que transita facilmente entre a arte, a filosofia, a física e a exatidão do cálculo matemático, é indivíduo de muitas faces. O imenso bônus agregado a esta prerrogativa carrega o ônus de transformar o conhecimento em luz ordenada por suas cores - o resultado de sua intervenção, a sua obra.
               Não importa se a construção for uma pequena residência ou um grande complexo de múltiplas atividades. A sua atuação deve corresponder aos princípios que unem os elementos intrínsecos, indissociáveis de sua formação profissional.
               Quanto maior for a sua experiência, quanto maior a intensidade de sua vivência urbana e arquitetônica, mais e maiores devem ser as suas raízes, os seus fundamentos entrelaçados como tecido incorrompível que estrutura a construção interior.
               A este conjunto de forte urdidura chamo de ética. Não apenas a ética centrada em ações exteriores, mas sobretudo a interior, a que limita as opções, a que tem paciência, a que convence por sua inteireza, a que tem função de escudo indeformável e intransponível e que, invariavelmente, estrutura as ações exteriores, a ética intrínseca a cada trabalho, a cada opção a ser adotada.
               O crescimento das cidades brasileiras exige, crescentemente, a intervenção do arquiteto. Seja na escolha coerente dos vetores de ampliação de núcleos urbanos, da criação de novos núcleos, da definição da forma de ocupação e de índices apropriados para cada momento, da relação entre ocupações e outros fatores. Neste processo, concorrem elementos de natureza cultural, psicológica, filosófica, social, econômica e ambiental. Elementos que interagem na proposição de cidades, de núcleos urbanos, de expansões urbanas, de áreas residenciais, comerciais, institucionais, industriais e rurais, de equipamentos públicos e de ocupação específica de cada pequena parcela desta ampla estrutura.
               Diante de cada circunstância, o arquiteto tem por obrigação assimilar os condicionantes locais não apenas em termos da atividade e da quantidade de área construída passível de absorção por determinado lote, mas sobretudo de entender o modo como a população apreende o seu espaço, como o utiliza, como se relaciona com ele, como enfim se habituou a viver e a vivenciar as transformações de seu próprio meio.
               Desta interelação surgem os paradigmas, os signos interiorizados que permitem à população reconhecer e afirmar, com firmeza, ser aquela a sua cidade, o seu bairro, a sua rua.
               O que a arquitetura tem proposto revela-se, muitas vezes, como intervenções absolutamente contrárias ao que chamamos de adequação ao entorno. A cada dia que passa, observamos o crescimento de torres em locais onde nunca imaginávamos que surgiriam. Pior ainda, extensas muralhas protegem os limites externos destes monumentos monolíticos, lembranças desconfortáveis de cidades antigas isoladas de possíveis ataques de tribos vizinhas.
                O surgimento destes deselegantes símbolos é o resultado de algumas variáveis inseridas nas normas urbanísticas aplicáveis a determinados locais, das necessidades do construtor e dos objetivos comerciais do empreendimento. Supostamente, o bem-estar do morador da torre é também pré-requisito da proposta.
               Mas o que resulta para a população local não habituada a estes novos signos? O que é feito de suas referências na paisagem, urdidas de longo tempo e introjetadas nas suas estruturas psicológicas, em suas raizes culturais, de acordo com as características sociais e econômicas de cada grupo?
               Nós, arquitetos, não vimos o suficiente para crer nas soluções mais humanizadas? Por onde anda o brilhantismo de nossa formação? Perder alguns metros quadrados de obra, que representem espaços a menos, comprometerão o projeto como um todo? Ou será que abdicamos de nosso conhecimento e só mantivemos em relevo os fatores econômicos e financeiros, desde a proposição de normas até a elaboração do projeto? E o bem-estar social? Onde esquecemos o espírito de luta pela cidade humanizada?
               Desde algum tempo, tenho ouvido de pessoas com idade mais avançada comentários desanimados sobre o futuro do Distrito Federal. Então me pergunto: As cidades ainda terão estrutura de proteção para os seus velhos? A experiência que vem das megalópolis espalhadas pelo mundo, ejetoras daqueles que já se tornaram uma espécie de estorvo urbano, há dezenas de anos nos mostram a crueldade do caminho de volta, ou da procura por um novo caminho, em busca de núcleos urbanos menos agigantados. 
                Mesmo diante da nitidez das inconsequências que os modelos econômicos perversos nos impõe, permanecemos na mesma e absurda rota de colisão entre o ser e o ter.
                O ser é sutil, é alma inefável, é a volátil existência. Pela mesma razão se sobrepõe e tenuemente conduz o ter, fera material companheira de estrada que precisa de constante, suave e firme orientação.