Por transporte público entendemos um sistema constituído por um conjunto de elementos com a função de favorecer o movimento de pessoas e de mercadorias. Este sistema deve ser subordinado a princípios de preservação da vida (segurança) e conforto das pessoas, sem interferências negativas sobre o meio ambiente e sobre o patrimônio arquitetônico e urbanístico (PDOT/DF, Lei Complementar 803/2009, Art. 17).
Para que este sistema funcione é necessário prover o território urbano e rural de elementos físicos capazes de estruturá-lo, como a seguir relacionados:
· Sistema viário e de circulação: malha viária definida e hierarquizada que possibilite a sua operação.
· Acessibilidade: distribuição eficiente do sistema viário e de circulação de modo a garantir o acesso a todos, desde os pontos de embarque até os de desembarque, permitindo a ampla apropriação das áreas urbanas ou rurais, sem possibilidade de segregação espacial ou exclusão social.
Desde há muito, e este muito atinge a década de 50, conhecemos as profundas dificuldades brasileiras com o transporte público. Estas questões abrangem não apenas os seus elementos estruturais – sistema viário e de circulação e acessibilidade – mas também a capacidade de absorver adequadamente a demanda, resultando em intenso desconforto e graves riscos para os usuários.
O planejamento urbano, que passa pelo Plano Diretor de Transportes Público, não pode desconhecer a intensidade da demanda passada, presente e futura, relacionada a este tipo de transporte, associada ao fato de representar poderosa fonte de renda daqueles que operam o sistema.
Curiosamente, ainda na década de 50, quando não havia nem mesmo o moderado acesso aos veículos individuais, trabalhadores já se avolumavam em enormes filas, nos subúrbios dos grandes centros urbanos, divididos em “fila do sentado” e “fila do em pé”, aguardando o embarque em ônibus sucateados, desconfortáveis e inseguros que os levassem até as áreas centrais da cidade. Depois da apertada viagem de cerca de duas horas, os pontos de chegada ainda não eram os destinos finais. Longas caminhadas se faziam necessárias até os locais de trabalho.
Se o atendimento era de extrema precariedade naquela época tão remota, por que motivo não houve interesse em adequar o transporte público às necessidades da população que cresceu consideravelmente? Qual a razão de se ter estimulado tanto o uso do transporte individual, como que “empurrando” o usuário para solucionar o seu problema de deslocamento, através da aquisição de seu veículo, e agora choram-se as mágoas pelo intrincado e crescente problema de circulação viária cada vez mais densa e dos estacionamentos público que devoram as áreas verdes e praças das grandes cidades?
Evidentemente, o descaso com o transporte coletivo soa como algo em que o interesse econômico se superpôs ao interesse público, relegando as necessidades da população e o decorrente planejamento urbano a um plano de clara inferioridade. Em nada podemos associar este sistema às regras da imprescindível sustentabilidade.
O planejamento urbano estabelece princípios e diretrizes que objetivam o bem estar da população. Entre estes direitos consta o acesso a transporte público de qualidade que permita a mobilidade urbana.
O Plano Diretor de Ordenamento Territorial do DF, apenas como referência a um caso específico, tem como diretriz para a circulação urbana a prioridade ao transporte público coletivo e ao transporte público não motorizado provendo, ainda, a qualidade ambiental garantida pelo controle dos níveis de poluição.
Contudo, desde os primeiros momentos de Brasília e do Distrito Federal, a semelhança do ocorrido em outros centros urbanos, o relevo das ações nunca se concentrou em resultados positivos relativamente ao transporte coletivo.
Cidade inicialmente desprovida de um centro, nos moldes das características conhecidas de aglomerações urbanas mais antigas, como Rio de Janeiro e São Paulo, era a extensão da avenida W3/Sul que concedia o atendimento às necessidades de consumo dos moradores recém-chegados.
Mas, em pouco tempo, o Setor Comercial Sul foi construído, transformando Brasília em “mais um” centro urbano, como em qualquer outra metrópole, característica que se enraizou com a criação dos outros Setores Centrais. O pólo de atração de massas se fixou entre estas localidades e a Esplanada dos Ministérios.
A questão que se impõe relativamente aos antigos e atuais problemas com transporte público coletivo no Brasil surge da relação entre este meio de locomoção e a formação de centralidades urbanas.
O modelo de nossas cidades sempre observou, fielmente, o modo de fazer originado em princípios europeus: os centros se lançam como áreas mais densas, de edificações mais próximas entre si e mais altas, abrigando os locais de ofertas de empregos e prestação de serviços. Todo o fluxo de veículos, coletivos ou individuais, segue este vetor, partindo da periferia dos grandes centros em direção ao núcleo adensado.
Freqüentemente me pergunto se este modelo, já tão combalido, que se tem demonstrado como gerador de problemas de circulação urbana, deve prosseguir sendo aplicado em caráter eterno. Sobretudo no Brasil, país de extensão territorial significativa, absolutamente distanciado dos pequenos territórios europeus, onde a concentração é inevitável.
E mais: qual a razão do planejamento urbano concentrar maiores esforços no traçado viário, inicialmente definindo a sua malha para depois distribuir a ocupação?
Acredito já ser tardia a hora de eliminar, de vez, o distanciamento entre o trabalhador e o seu emprego. O PDOT/DF prevê esta diretriz. Mas será que a interação entre os interesses econômicos envolvidos, por um lado, no Sistema de Transporte Coletivo e, por outro lado, na conhecida especulação imobiliária concederão espaço para que a lógica da aproximação entre trabalhador e emprego realmente se implanta? Ou será que a distribuição do espaço urbano com a inclusão de subcentros resultará na valorização de imóveis da localidade e a conseqüente comercialização predatória?
Muito há que se fazer no Brasil, e não apenas em Brasília. Não existe caminho mágico que, repentinamente, substitua o sucateado transporte através de ônibus por conduções dignas.
Ao mesmo tempo, não existe possibilidade de convencer o condutor do transporte individual de substituir o seu carro pelo transporte coletivo, conhecedor que é das sofríveis ou péssimas condições que apresentam. Certamente ele preferirá suportar o engarrafamento em seu espaço particular, em vez de disputar piso para apoiar o pé em ônibus lotados, de vidros suados pelas múltiplas expirações. Diga-se de passagem, o crescimento populacional em pouco tempo tornará o metrô obsoleto.
O desafio imposto ao planejamento urbano cresce na mesma proporção do aumento da população economicamente ativa.
O modelo de criação de centralidades já passou da hora de ser revisto e, ainda, deixar a cargo de concessões de uso de transporte público este setor vital para o funcionamento urbano tem, há muitas décadas, produzido efeitos lamentáveis sobre a dignidade humana. Necessário se faz, portanto, promover a dispersão dos locais de oferta de emprego e renda, aproximá-los dos núcleos residenciais.
Como conhecedores da tendência de comercialização de imóveis valorizados a partir da implantação de postos de serviço nas proximidades, necessário se faria aplicar instrumentos urbanísticos de controle sobre operações comerciais. Quem sabe, com o rompimento de modelos obsoletos, nos habilitaríamos a aspirar por melhor inserção no ranking da dignidade e bem estar social.
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