O conceito de pilotis, originado nos
princípios da arquitetura moderna e difundidos na Europa de pós-guerra,
representou a liberação do espaço térreo das edificações em termos visuais e de
deslocamento de pedestres.
As edificações construídas até então
eram caracterizadas por blocos compactos, onde o térreo destinava-se ao acesso,
constituído por um saguão com elevadores, escadas e alguns outros elementos
para atendimento exclusivo aos usuários locais.
Neste mesmo modelo compacto, muitas
edificações tiveram a área do térreo
ocupada por lojas, além do mencionado acesso vertical. Nesta caracterização, o
espaço do saguão foi significativamente reduzido. Em muitos casos constituído
apenas por um corredor de, no máximo, 1,20m de largura, encaminhando os
usuários para a circulação vertical.
Ainda hoje, esta forma de utilização compacta
das áreas do térreo é profusamente adotada, como forma de aproveitamento máximo
da área construída permitida para o lote.
A circulação urbana de pedestres,
obviamente, assimila todo o impacto negativo desta forma de captação
construtiva do térreo. Se observarmos o meio urbano sob este aspecto,
verificaremos que resta ao pedestre o uso das calçadas públicas paralelas às
vias de circulação de veículos, ampliando os seus percursos ao longo dos
conhecidos quarteirões.
O conceito de pilotis, onde está
implícita a liberação do térreo, permite ao pedestre reduzir o tempo de caminhada
e a fácil orientação através da visualização dos seus objetivos de chegada.
Nestes termos, foram concebidas as
superquadras do Plano Piloto de Brasília, locais específicos para o uso
habitacional coletivo.
A concepção de cada uma das
superquadras, com os blocos edificados lançados isoladamente sobre o solo, em
número e dimensões fixas, rompeu com a antiga ordem dos quarteirões compactos,
garantindo a transparência da paisagem urbana e da paisagem natural. Esta é uma
das principais razões que leva a se afirmar que o Plano Piloto tem o horizonte
aberto.
Nas décadas de 1960 e 1970, os
pilotis eram construídos de acordo com os seus princípios de criação: O térreo
dos blocos residenciais compunha-se de “entradas”, nomes popularmente dados aos
compartimentos para o acesso vertical, compostos por um saguão de cerca de
15m², com escadas, elevadores, depósito para lixo e um compartimento para a
zeladoria, além dos pilares de sustentação.
Esta proposta apresentava uma
interseção perfeita com as calçadas e jardins do entorno da edificação, tudo em
nível, livre de quaisquer barreiras que dificultassem o acesso de pedestres ao
térreo.
Por esta época, a legislação
urbanística aplicável às habitações coletivas das superquadras tinha a rigidez
garantidora da manutenção do princípio dos pilotis. Nada, além dos mencionados
acessos e pilares, era permitido construir no térreo das edificações.
Mas, no início da década de 1980, os
princípios começaram a ser modificados.
Primeiramente, foram propostos
pequenos jardins, localizados entre os acessos verticais. Logo depois,
solicitações se avolumavam no órgão urbanístico, requerendo a liberação de
parte do térreo para a construção de salão de festas. Argumentavam, sempre, a
necessidade dos moradores de dispor de um local para esta finalidade.
Não demorou muito e requereram um
depósito para material de limpeza e sala para o condomínio, além da ampliação
do salão de festas.
Paralelamente, questionavam: a
possibilidade de alterar a forma e o volume das edificações, a construção de
varandas sobre área pública em espaço aéreo, as dimensões insuficientes do
subsolo destinado à garagem, a possibilidade de implantação dos compartimentos
para acesso vertical em área pública e o uso da cobertura para lazer.
Como resultado, surgiu a Lei
denominada de Concessão de Direito Real de Uso, onde foram significativamente
alteradas as características destas edificações. Neste contexto, foram
permitidas várias ocupações no térreo. As dimensões dos pilotis foram mantidas
conforme a projeção registrada em cartório, mas as ocupações que alteraram este
nível comprometeram a transparência visual.
Ao mesmo tempo, os acréscimos
permitidos no subsolo, equivalentes a 150% da área da projeção dos pilotis,
produziu consequências negativas para os acessos ao térreo. No momento em que
os subsolos afloraram, o nível dos pilotis se elevou, exigindo escadas para acessá-los.
Em decorrência, não só a
transparência visual foi removida, mas também a interseção entre os pilotis e
as calçadas públicas, tornando proibitivo ou dificultando o acesso de
pedestres.
Em 1998, ano da publicação do Código
de Edificações do DF, dois artigos muito significativos foram introduzidos. Um
deles exige a construção de rampas para acesso aos pilotis, permitindo até
mesmo que seja em área pública, e o outro artigo proíbe a existência de
desnível entre os pilotis e as calçadas públicas do entorno imediato. Logo, a
eliminação de barreiras voltou a ser requerida.
Esta duplicidade de tratamento –
rampas e eliminação de barreiras, ao mesmo tempo – pode fazer pensar em
incoerência. Mas não é. As rampas valem para as projeções já construídas em
época anterior a 1998 e que apresentem o mencionado desnível, ao mesmo tempo em
que garante que as construções a partir de 1988 não tenham desníveis, mesmo que
seja um acréscimo de subsolo naquelas em que o número de vagas para veículos
seja insuficiente ou a construção de subsolo em locais onde não existir, caso
das superquadras 400, onde a proposta do Plano de Preservação do Conjunto
Urbanístico de Brasília (PPCUB).
A Lei Complementar do futuro PPCUB
prevê a ocupação dos pilotis em até 30% de sua área registrada em cartório, com
acesso vertical, residência para zelador, salão de múltiplas atividades,
bicicletário, sala para condomínio, depósito para material de limpeza,
dependências para funcionários,
lixeiras, compartimentos técnicos e pilares incluídos na mesma porcentagem.
Se tomarmos como exemplo uma projeção
das superquadras 400, com dimensões de 10m X 80m = 800m², os pilotis poderão
ser ocupados em 24m² (30% de sua área). Nesta circunstância, nem todos os
compartimentos permitidos serão de construção possível. Terá que haver uma
escolha.
Ao longo dos anos, foram verificados
muitos desvios de finalidade no modo de utilização dos compartimentos dos
pilotis. A residência para zelador, em algumas edificações, foi alugada para
terceiros e o salão de festas se transformou em objeto de ganhos dos
condomínios, igualmente com o aluguel para interessados não residentes na
edificação. O que se afasta completamente das justificativas iniciais que
embasaram a mudança na legislação aplicável.
Além destes fatos, na década de 1990
tentaram fechar, com cercas, os limites dos pilotis. Houve até uma tentativa de
fechar completamente os limites das superquadras. Felizmente a legislação de
tombamento de Brasília impediu o intento, e permanece garantindo a manutenção
dos princípios que nortearam o caráter inovador (à época) dos pilotis.
A despeito do significativo conteúdo
plástico-formal contido na materialização destes princípios e apesar dos
pilotis já terem mais de 50 anos de existência, a verdade é que o sentido de
apreensão do espaço em caráter coletivo ainda não foi devidamente assimilado. O
interesse individual ainda permanece arraigado à maioria de nós.