Um dos mais desafiantes impasses
presentes em qualquer tecido urbano, seja qual for o País ou cidade,
independente das dimensões territoriais, é a questão do tratamento a ser
oferecido a cada núcleo, consideradas as características que assumem de acordo
com as épocas em que são formados.
As cidades surgem de dois modos: espontâneo
e planejado.
O modo espontâneo, esta a
característica mais comum das cidades brasileiras, da mesma forma que o
planejado, decorrem de diferentes necessidades, sempre associadas às
estratégias de localização e sua importância no atendimento a interesses
econômicos – proximidades de rodovias, de áreas rurais, de corpos d’água, de
áreas de mineração, de praias, de núcleos urbanos pré-existentes, de
centralização para distribuição de frentes de desenvolvimento regional, além de
outros motivos.
A observação das antigas cidades
brasileiras de surgimento espontâneo revela uma ordem comum a todas,
tornando-as muito semelhantes: Ao centro foram construídas as igrejas,
isoladamente em relação às demais edificações, dominando inteiramente a
paisagem por sua localização privilegiada e características construtivas quase
sempre imponentes, rodeadas por uma praça de dimensões consideráveis.
Voltados para esta mesma praça, em
arquitetura um pouco menos imponente, foram construídos os edifícios
governamentais.
Ao redor deste local surge o casario
de até dois pavimentos, ao longo de vielas estreitas, à época utilizadas por
pedestres, carroças e carruagens. A disposição irregular do casario revela uma
implantação “desenquadrada” pela ausência de projeto urbanístico e de instrumentos
que permitissem o alinhamento entre as obras e em relação à viela.
Cidades planejadas, como Brasília,
Belo Horizonte, Goiânia e Palmas, foram concebidas, cada qual, em seu momento
histórico, traduzindo em seus traçados os usos residencial, comercial,
institucional, industrial e rural, de acordo com as necessidades e aspirações
de cada época, em busca do atendimento à dinâmica própria da população.
Como resultado, no caso específico de
Brasília, foram criados Setores voltados para os usos e suas diferentes
atividades, necessários ao funcionamento do sistema urbano.
Neste contexto, o uso residencial foi
concebido com atividade habitacional coletiva ( em caráter quase exclusivo em
relação à atividade residencial unifamiliar) desenvolvida em 120 superquadras,
localizadas ao longo das asas norte e sul da cidade, intercaladas por
edificações comerciais e institucionais. Entre as duas asas, em sentido
transversal, foi proposto o uso institucional com atividades governamentais, ao
lado de teatros e museus. No centro deste cruzamento, foi construída a Estação
Rodoviária, providenciando o acesso da coletividade.
Ao longo das duas margens das asas
norte e sul, as áreas foram destinadas ao uso institucional, com atividades, em
sua maioria, hospitalares, educacionais, religiosas e governamentais.
A descrição é sucinta, com o objetivo
exclusivo de distinguir as diferenças dos modos de tratamento entre cidades espontâneas
e planejadas e como a temporalidade influencia os modos futuros de utilização
urbana.
As cidades espontâneas, muito
antigas, se formaram em uma época em que a ciência médica era pouco desenvolvida,
além da população local não representar número que justificasse a existência de
atendimento de massas.
A educação não era prioridade. No
Brasil, saber ler e escrever era atributo de poucos. Os conhecimentos práticos,
transmitidos de pai para filho, que permitissem a comercialização de produtos e
a prestação de serviços básicos tinham muito valor em termos de sobrevivência.
A segurança se restringia,
igualmente, a providências práticas – a ponta
da arma apontada pelos vazios dos muxarabis, de onde podiam ver sem serem
vistos, e as emboscadas pelos caminhos tortuosos de matas asseguravam
resultados imediatos.
A presença governamental, quando se
fazia, era tênue. Não era acessível à população, exceto se alguém era posto “a
ferros” em enxovias, ocasiões em que a função governamental se misturava à
judicial.
As cidades planejadas apresentaram
melhores formas de organização urbana, de acordo com os princípios e
necessidades vigentes às respectivas épocas, além das previsões de futuras
demandas.
Contudo, cidades espontâneas e planejadas
sofrem as pressões próprias da dinâmica das novas necessidades e aspirações
populacionais, sempre ao lado do desenvolvimento tecnológico, cultural,
econômico, político, social e ambiental, além de outros fatores interagentes
neste processo contínuo.
As cidades espontâneas são as mais
atingidas, considerada a fortíssima influência da questão temporal, que
subentende profundas modificações no modo de vida da população, sempre se
renovando e requerendo imediatas adequações do meio urbano às suas necessidades.
Como, em épocas remotas, poderiam
pensar no tráfego de veículos motorizados pelos centros urbanos e ainda na
intensidade em que hoje ocorre?
De que forma poderiam prever a
densidade populacional tão alta que hoje se acumula nos centros urbanos, sobretudo
em São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e outras cidades igualmente surgidas
espontaneamente?
Mesmo os núcleos planejados enfrentam
problemas semelhantes.
O Distrito Federal foi pensado para
uma população de até 500 mil habitantes. Hoje aglomera 2500 pessoas, cinco
vezes a população prevista.
Exatamente por ser planejada,
Brasília detém quase toda a estrutura de empregos em seu centro, nos moldes
pensados pela técnica de planejamento urbano, ainda vigente, que ali concentra
edifícios destinados à maior absorção de mão de obra, os centros
administrativos nacional e local, os Setores Comerciais, Bancários, Hoteleiros
e Autárquicos Norte e Sul.
Na verdade, a ofensiva criação de
aglomerados populacionais nas décadas de 1980 e 1990, no entorno do Plano
Piloto de Brasília, muito intensa quando a invasão de terras públicas contava
com a omissão complacente do Poder Público, não serviu tanto para solucionar os
problemas de moradia do DF. Foi ato de forte atração de pessoas de outras
unidades da federação, em busca de melhores condições de vida e atraídos pelos
altos preços dos lotes urbanos. Para dizer o mínimo.
Em observância ao já obsoleto modelo
de estrutura urbana, de concentração de empregos em áreas centrais, o planejado
Plano Piloto de Brasília sofre as negativas consequências da impossibilidade de
prever ocorrências futuras, da mesma forma que cidades surgidas
espontaneamente, como São Paulo e Rio de Janeiro, tiveram os seus centros catalisados
como absorvedores de mão de obra.
Diversas cidades espontâneas tiveram
áreas do seu entorno destinadas, mediante planejamento, aos novos usos e
atividades requeridas pelo crescimento populacional e suas demandas econômicas,
sociais, tecnológicas, industriais e outras. Em conformidade com a legislação
de preservação de patrimônio histórico, artístico e cultural, as áreas centrais foram mantidas da forma como
criadas, em alguns casos com proibição de trânsito de veículos pesados capazes
de expor a riscos as velhas construções e pavimentações.
Contudo, cidades como Salvador, entre
outras, sofrem graves consequências pela falta de manutenção de edificações
históricas. Vez por outra, uma igreja desaba, vencida por cupins ou inundações
resultantes da impermeabilização das áreas adjacentes, acrescidas para atender
à demanda habitacional, industrial e outras, sem observância aos requisitos
ambientais.
Diante deste quadro crítico, a
questão da temporalidade se impõe de forma muito clara, em cidades espontâneas
e planejadas.
Como garantir que aquilo feito hoje,
com suas propostas e previsões futuras, será útil como contribuição para o crescimento
urbano?
Pretende-se que, no futuro, o
transporte de massa seja o ideal para a mobilidade urbana. Mas será possível
alcançar esta idealização?
Se não conseguimos atender ao hoje,
como atender ao depois? Se não temos lentes capazes de corrigir a miopia da
falta de interesse político pelas pesquisas urbanísticas, como pensar em
telescópio que descerre o amanhâ?
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