O Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10257, de 10/07/2001) define, em seu Art. 36, que “Lei Municipal definirá os empreendimentos e atividades privados e públicos em área urbana que dependerão de elaboração de Estudo prévio de Impacto de Vizinhança (EIV) para obter as licenças ou autorizações de construção, ampliação ou funcionamento a cargo do Poder Público Municipal”.
O objetivo deste estudo é avaliar os efeitos resultantes, positivos e negativos, que determinado empreendimento ou atividade causará à população residente na área onde se localizará a obra, e nas suas proximidades, no que se refere à sua qualidade de vida.
O EIV representa, portanto, instrumento fundamental da política urbana, orientador do planejamento Regional, Estadual ou Distrital e Municipal, sob os aspectos do parcelamento, Uso e Ocupação do Solo, do Desenvolvimento Econômico e Social e das Outorgas Onerosas do Direito de Construir e de Alteração de Uso.
A partir destes princípios, qualquer intervenção em área urbana que pretenda modificar ou alterar usos e atividades, que objetive acrescer área construída às unidades imobiliárias já existentes ou a serem criadas, que pretenda promover o desenvolvimento econômico e social, exige a prévia elaboração do EIV, pelo Poder Público, imprescindível à orientação dos caminhos a serem percorridos na obtenção de condições satisfatórias de ordenamento territorial urbano, garantindo o bem-estar social não apenas nas áreas diretamente atingidas pelas intervenções, mas também nas localidades mais próximas e mais remotas.
Considerando que a cidade é organismo a ser continuamente provido de condições vitais, alterar parte deste organismo implica em produzir inevitáveis reflexos sobre a sua totalidade. Da mesma forma que paralisar o organismo, “engessá-lo”, significa condená-lo à inatividade e conseqüente regressão até o desaparecimento.
O termo “bem-estar social” é intrinsecamente associado à gestão democrática do meio urbano. Não é possível entender que alterações sejam impostas à população sem que haja a elaboração de EIV. Elaborar este estudo não só exige o conhecimento técnico/teórico, mas representa ato comum, envolvendo a população direta ou remotamente atingida. Abster-se desta interação resulta em soluções sem sustentação, inoportunas, inúteis, natimortas e, muitas vezes, ofensivas e prejudiciais às comunidades. Só quem vive em determinada área é capaz de conhecer em profundidade os problemas e as vantagens inerentes ao local.
O Estudo de Impacto de Vizinhança é o instrumento que mensura os impactos sobre a circulação de veículos e de pedestres, sobre o fornecimento de água e energia elétrica, sobre o transporte público e sobre a captação de esgoto e águas pluviais. Avalia, também, a influência de novas ocupações sobre áreas verdes e demais áreas livres urbanas, sobre a capacidade de atendimento de equipamentos públicos coletivos (escolas, hospitais, etc.). Enfim, se constitui de diversos temas de análise que possibilitam um diagnóstico das áreas atingidas.
Em resumo, não é possível propor alterações de usos e de potenciais construtivos sem o diagnóstico da área e do prognóstico resultante das intervenções.
A cidade, enquanto organismo vivo, sofre interferências contínuas produzidas por novas construções e pelas alterações necessárias ao seu desenvolvimento. Os riscos resultantes de tratamento incorreto são significativos, capazes de mais provocar prejuízo que benefício às populações envolvidas.
Não representa ocorrência incomum, seja em cidades brasileiras ou mesmo de outros países, que preocupações com o atendimento á demanda por habitações, com a arrecadação de impostos e com a criação de novos postos de trabalho ignore todos os demais aspectos e respectivos condicionantes envolvidos no bem-estar social.
Estudos de Impacto de Vizinhança, imprescindíveis às alterações necessárias, não podem ser elaborados pelos compradores de lotes que, a priori, já efetivaram a aquisição atraídos pelas possibilidades de maiores lucros advindos de mudanças de usos e acréscimos de potenciais construtivos.
Esta circunstância é semelhante à hipótese de um veículo andar em marcha a ré, por longo percurso, sem a observação pelo retrovisor. Ver toda a paisagem em ordem invertida requer ajustes constantes, adaptados ao movimento, e não à ordem da realidade já estabelecida.
As inevitáveis “trombadas” são minimizadas por propostas de correções da realidade instalada, ampliando ou criando vias de circulação de veículos e instalações de serviços públicos, entre outras intervenções capazes de promover a assimilação urbana dos novos empreendimentos.
O sucesso ou o insucesso das propostas depende da capacidade de análise dos condicionantes urbanos envolvendo todos os aspectos inerentes a cada realidade específica. Neste ponto do estudo incide o interesse do proprietário do empreendimento que, convenhamos, não pagaria por este serviço se os resultados fossem desfavoráveis. Afinal, o lote já foi adquirido e o projeto arquitetônico elaborado. Esta é a real situação. Muito diferente seria se as proposições de alterações se fundamentassem na prévia análise da realidade objetiva. Certamente o resultado seria bem outro.
Sempre e continuamente me pergunto sobre os procedimentos adotados por prefeituras e Estados para a aprovação de projetos urbanísticos de inserção de novas áreas urbanas, em nível de extensão e adensamento.
Mesmo que o Estatuto da Cidade, Lei Federal, tenha determinado a obrigatoriedade da elaboração de Plano Diretor para núcleos urbanos com mais de 20 mil habitantes e, conseqüentemente, obrigou à elaboração do EIV para atingir os objetivos do desenvolvimento, como se explica que ainda exista tanto esgoto escorrendo a céu aberto, tanta carência de obtenção de água e energia elétrica e tanta ineficiência no atendimento com hospitais? Mas as obras de grande porte, como condomínios e outros loteamentos não param de surgir por todo o País. Se as condições mais elementares à sobrevivência urbana não são atendidas nas áreas de maior carência, como propor novas áreas?
Quando o crescimento e o desenvolvimento se concentram em áreas comerciais e institucionais sempre se prevê o correspondente acréscimo no recolhimento de impostos e taxas em níveis mais significativos e a aplicação destes recursos, em tese, seria devolvido à população em aprimoramento dos serviços públicos.
Se observarmos a micro-esfera do núcleo urbano do Guará, que obras públicas foram executadas como compensação urbanística? Poucas, na verdade. Mas as conseqüências do adensamento ocorrido começam a surgir. O sinal da TV aberta já não chega a localidades contíguas às edificações extremamente altas e os primeiros problemas de fornecimento de água e energia elétrica já começaram a se delinear.
Por outro lado, não têm ocorrido às necessárias ofertas de novos postos de trabalho, nem as alterações nos transportes coletivos, que permanecem uma catástrofe urbana, ao mesmo tempo em que mais e mais veículos obstruem a totalidade das vias de acesso ao Plano Piloto, local de concentração de empregos. Mas as enormes edificações ainda nem foram ocupadas.
As preocupações com o atendimento às necessidades básicas da população representam fatos antiqüíssimos. Os aquedutos romanos e os canais construídos pelas Civilizações Maias, Incas, Astecas e outras cujos índices de concentração humana atingiram níveis significativos, demonstram, historicamente, que no Brasil a evolução do entendimento de “bem estar social” sempre foi conceito pouco trabalhado. Afinal, desde os primeiros momentos da existência deste País, o trabalho escravo no transporte de águas e dejetos produzidos retratam a indisposição de se providenciar a necessária infra-estrutura urbana. Não é de se surpreender que até o momento atual, século XXI, milhares de residências ainda não disponham de água encanada e interligação domiciliar ao sistema de esgotamento sanitário.
A despeito da extrema complexidade assumida por nossos núcleos urbanos, abordar o tema Estudo de Impacto de Vizinhança, procedimento que deveria ser comum por sua fundamental importância no ordenamento territorial, tornou-se algo que causa ora estupefação e ora indignação daqueles que se habituaram, por décadas, a exercer atividade construtiva predatória. Não apenas alguns responsáveis por grandes obras, mas também muitos proprietários de obras residenciais. Estes últimos, no final de tudo, representam maioria no cálculo das ocupações urbanas, portanto, exercem profunda demanda por serviços públicos.
Provavelmente, as razões desse descaso histórico estejam vinculadas às enormes diferenças econômicas e sociais presentes em nosso País. Quem sempre viveu em áreas urbanizadas talvez não consiga compreender, em profundidade, a carência existente em locais de miséria e pobreza. E quem vive nas áreas carentes não consegue acessar o entendimento das razões do abandono.
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