Na década de
1970, um instigante comentário circulava pelos meios estudantis da Arquitetura
e Urbanismo – O Plano Piloto pecava pela ausência de esquinas.
A análise desta
afirmação transformada em crítica dependia, e muito, da origem de quem a ouvia.
Se o estudante provinha de outras cidades brasileiras, havia sentido na
afirmação, mas se o aluno havia sido criado no Plano Piloto, restava uma grande
dúvida e dificuldade em processar aquela frase.
O que é uma esquina?
Nas cidades de traçados convencionais, esquina é o ponto de convergência entre
dois segmentos de reta que estruturam e conduzem lotes sucessivos que compõe um
quarteirão. Deste ponto específico, é possível visualizar com maior clareza o
panorama do contexto urbano onde o observador se insere, incluindo edificações
e sistema viário. Este local sempre foi o preferido ponto de encontro para
conversas.
Mas o Plano
Piloto, cidade planejada sem a formação de quarteirões com arestas desta
natureza, as esquinas, pelo menos nestes padrões, realmente inexistem.
Naturalmente, a
crítica à cidade sem esquinas, em um primeiro momento, parecia incompreensível
ao jovem residente no Plano Piloto desde a sua infância.
Na verdade, o
que se queria afirmar era a inexistência de pontos que chamassem à convivência,
à informalidade de conversas, enfim, ao lazer despretensioso.
Mas o Plano
Piloto, mesmo sem esquinas, sempre teve uma vida vibrante e intensa. Apenas o
modo de apreensão dos espaços, com objetivos de convivência, foi modificado.
Os jovens das
décadas de 60 a 80 buscavam atividades de duas naturezas: Parte refletia ou era
uma extensão de suas atividades educacionais e outra parte era essencialmente
descontraída.
Desta forma, no
final da década de 60, o auditório da escola-parque da 308 sul exibia,
semanalmente, filmes estritamente artísticos, apresentando grandes diretores
brasileiros, suecos, alemães, japoneses, italianos, franceses e russos.
A plateia, lotada de boquiabertos adolescentes
diante de uma tela que os ajudava a moldar e aperfeiçoar a maravilhosa intenção,
inerente à idade, de mudar o Brasil e o mundo, nos permite afirmar que aquele
local era uma “esquina” de intenso sucesso e de muita reflexão.
Em meados da mesma década de 60, o
Cine Brasília exibia filmes infantis nas manhãs de sábado e boas produções à
tarde e à noite. Esta dinâmica de interação cultural com a cidade culminou no
excelente Festival do Cinema Brasileiro, há cerca de quarenta anos em cartaz
naquela mesma “esquina”.
O Teatro Nacional, quando ainda
inacabado, sem revestimentos, inclusive no piso em cimento grosso e sem
cadeiras, apresentava espetáculos de balé europeu e africano. A aridez do
espaço reservado à plateia e às outras funções contrastava com o esmero do
acabamento do palco, mostrando conceitualmente a que veio. O brilho nos olhares
do público ignorava o desconforto físico, mesclando-se ao brilho de cada
espetáculo daquela “esquina”.
A tranquilidade, sem a interferência
negativa das agressões urbanas, propiciava passeios à W/3 Sul, com paradas
obrigatórias nas excelentes sorveterias e confeitarias, como a Colombo e a
Flamingo. Numa época ainda sem shoppings, a W/3 Sul, suas vitrines e larga
calçada de distanciadas interrupções era uma longa e aprazível “esquina”,
frequentada por adolescentes barulhentos e adultos.
Para os mais velhos, ou melhor, os
menos jovens, no início da década de 70 havia bares muito dinâmicos, como a
Maloca, na Rua da Igrejinha, e o Beirute na 109 Sul. A Maloca era para uma boa
conversa com os amigos e o Beirute cedia espaço para revolucionários políticos,
artistas e engajados alunos da UnB. Vez por outra acontecia, nesta “esquina”,
uma boa confusão com a polícia, mas tudo muito digerível.
Como aproveitamentos dos trechos
finais dos pilotis das habitações coletivas das superquadras, adolescentes se
reuniam em grandes turmas para conversar besteirol, rir e gritar à toa,
desesperando os moradores do primeiro e segundo pavimentos, bem acima. Não
fossem as agressões urbanas, é possível que estas “esquinas” do alarido
funcionassem até hoje.
Atualmente, muitos frequentam
galerias e praças internas de shoppings. Andam à toa, conversam, riem, enfim,
convivem. Esta é uma “esquina” que resistiu ainda razoavelmente segura contra a
violência que se embrenha em todos os espaços.
Talvez a discussão sobre esquinas já
não tenha lugar. Possivelmente, nos tempos atuais, nenhuma cidade conheça mais
a função destes recantos mágicos da interação humana. Mas é importante afirmar
que o Plano Piloto teve muitas “esquinas”. Não iguais às esquinas fisicamente
moldadas pelo planejamento urbano, mas outras “esquinas”, tão filosóficas,
culturais, artísticas, psicológicas, enfim, tão humanas quanto quaisquer esquinas do mundo.
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