quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Tributo ao Plano Piloto sem Esquinas

                                        

         Na década de 1970, um instigante comentário circulava pelos meios estudantis da Arquitetura e Urbanismo – O Plano Piloto pecava pela ausência de esquinas.
         A análise desta afirmação transformada em crítica dependia, e muito, da origem de quem a ouvia. Se o estudante provinha de outras cidades brasileiras, havia sentido na afirmação, mas se o aluno havia sido criado no Plano Piloto, restava uma grande dúvida e dificuldade em processar aquela frase.
         O que é uma esquina? Nas cidades de traçados convencionais, esquina é o ponto de convergência entre dois segmentos de reta que estruturam e conduzem lotes sucessivos que compõe um quarteirão. Deste ponto específico, é possível visualizar com maior clareza o panorama do contexto urbano onde o observador se insere, incluindo edificações e sistema viário. Este local sempre foi o preferido ponto de encontro para conversas.
         Mas o Plano Piloto, cidade planejada sem a formação de quarteirões com arestas desta natureza, as esquinas, pelo menos nestes padrões, realmente inexistem.
         Naturalmente, a crítica à cidade sem esquinas, em um primeiro momento, parecia incompreensível ao jovem residente no Plano Piloto desde a sua infância.
         Na verdade, o que se queria afirmar era a inexistência de pontos que chamassem à convivência, à informalidade de conversas, enfim, ao lazer despretensioso.
         Mas o Plano Piloto, mesmo sem esquinas, sempre teve uma vida vibrante e intensa. Apenas o modo de apreensão dos espaços, com objetivos de convivência, foi modificado.
         Os jovens das décadas de 60 a 80 buscavam atividades de duas naturezas: Parte refletia ou era uma extensão de suas atividades educacionais e outra parte era essencialmente descontraída.
         Desta forma, no final da década de 60, o auditório da escola-parque da 308 sul exibia, semanalmente, filmes estritamente artísticos, apresentando grandes diretores brasileiros, suecos, alemães, japoneses, italianos, franceses e russos.
 A plateia, lotada de boquiabertos adolescentes diante de uma tela que os ajudava a moldar e aperfeiçoar a maravilhosa intenção, inerente à idade, de mudar o Brasil e o mundo, nos permite afirmar que aquele local era uma “esquina” de intenso sucesso e de muita reflexão.
Em meados da mesma década de 60, o Cine Brasília exibia filmes infantis nas manhãs de sábado e boas produções à tarde e à noite. Esta dinâmica de interação cultural com a cidade culminou no excelente Festival do Cinema Brasileiro, há cerca de quarenta anos em cartaz naquela mesma “esquina”.
O Teatro Nacional, quando ainda inacabado, sem revestimentos, inclusive no piso em cimento grosso e sem cadeiras, apresentava espetáculos de balé europeu e africano. A aridez do espaço reservado à plateia e às outras funções contrastava com o esmero do acabamento do palco, mostrando conceitualmente a que veio. O brilho nos olhares do público ignorava o desconforto físico, mesclando-se ao brilho de cada espetáculo daquela “esquina”.
A tranquilidade, sem a interferência negativa das agressões urbanas, propiciava passeios à W/3 Sul, com paradas obrigatórias nas excelentes sorveterias e confeitarias, como a Colombo e a Flamingo. Numa época ainda sem shoppings, a W/3 Sul, suas vitrines e larga calçada de distanciadas interrupções era uma longa e aprazível “esquina”, frequentada por adolescentes barulhentos e adultos.
Para os mais velhos, ou melhor, os menos jovens, no início da década de 70 havia bares muito dinâmicos, como a Maloca, na Rua da Igrejinha, e o Beirute na 109 Sul. A Maloca era para uma boa conversa com os amigos e o Beirute cedia espaço para revolucionários políticos, artistas e engajados alunos da UnB. Vez por outra acontecia, nesta “esquina”, uma boa confusão com a polícia, mas tudo muito digerível.
Como aproveitamentos dos trechos finais dos pilotis das habitações coletivas das superquadras, adolescentes se reuniam em grandes turmas para conversar besteirol, rir e gritar à toa, desesperando os moradores do primeiro e segundo pavimentos, bem acima. Não fossem as agressões urbanas, é possível que estas “esquinas” do alarido funcionassem até hoje.
Atualmente, muitos frequentam galerias e praças internas de shoppings. Andam à toa, conversam, riem, enfim, convivem. Esta é uma “esquina” que resistiu ainda razoavelmente segura contra a violência que se embrenha em todos os espaços.
Talvez a discussão sobre esquinas já não tenha lugar. Possivelmente, nos tempos atuais, nenhuma cidade conheça mais a função destes recantos mágicos da interação humana. Mas é importante afirmar que o Plano Piloto teve muitas “esquinas”. Não iguais às esquinas fisicamente moldadas pelo planejamento urbano, mas outras “esquinas”, tão filosóficas, culturais, artísticas, psicológicas, enfim, tão humanas quanto quaisquer esquinas do mundo.






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